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A Pessoa de Deus tratada como coisa descartável

A difusão do ateísmo em Portugal começa a ser recorrente em entrevistas editadas pela televisão, imprensa escrita e internet. Pessoas dos mais diversos quadrantes socioculturais, quando confrontadas com a questão da existência de Deus, respondem que não são crentes, de modo taxativo: “Não sou crente!” E eu até vi, na RTP, em horário nobre, um humorista replicar semelhante resposta dizendo: “Eu também não!” E pronto, fica tudo resolvido em duas penadas, como se Deus fosse um pechisbeque qualquer de deitar fora. Acreditar ou não numa divindade sobrenatural, transcendente à natureza humana, pertence à esfera do livre-arbítrio de cada pessoa, pelo que tal faculdade não é passível de contestação. Não é isso o que está em causa. O que está em causa é a ligeireza filosófico-religiosa com que se coloca a questão da existência de Deus, sendo certo que este assunto teológico extravasa o domínio da manifestação profana da atividade humana e projeta-se numa dimensão de fundas raízes históricas e antropológicas. Quando leio ou ouço alguém escrever ou dizer que não acredita em Deus, de modo trivial, fico com a sensação de que ela se quer livrar de um problema incómodo para a sua consciência de ser pensante. Muitas vezes dá a impressão de que os profissionais da comunicação social e da internet falam da existência de Deus com a mesma leviandade com que falariam da existência de zombies. Acho, porém, que não se deve reduzir tão complexo topos a uma mera banalidade comunicacional. Por um lado, convém não esquecer que a temática teologal remonta às primeiras civilizações humanas (babilónica, suméria, assíria, fenícia, egípcia…) e ainda é, nas sociedades contemporâneas, alvo de estudos de todo o género, e nem será preciso lembrar que, no monoteísmo (judaísmo, cristianismo, islamismo), Deus é origem e causa dos respetivos sistemas religiosos; por outro, a quaestio divina convoca conceitos que não podem ser reduzidos a meros truísmos de circunstância, desprovidos de valor ideológico. E, depois, custa ver Deus misturado com perguntas sobre aspetos do materialismo vulgar dos entrevistados, como sejam gostos gastronómicos, vícios ou dependências fisiológicas, passatempos, jogos, modas, etc., como se o transcendente fosse da mesma natureza do imanente. Ninguém é obrigado a pensar em Deus, como é óbvio. Mas todo aquele que o faz, estabelece ligação a uma realidade que só pode ser intuída pela conciliação do pensamento racional com um sentimento de crença que não se funda em leis positivas ou naturais, já que Deus, enquanto entidade e mistério, não é enquadrável nesta ou naquela teoria científica. Da incapacidade de entender as forças ocultas que se manifestam em fenómenos incompreensíveis para o homem, nasceu o pensamento mítico que originou as teogonias das primeiras civilizações. A esse propósito, são conhecidos, por exemplo, os Mistérios de Elêusis, na Grécia, ou o Drama da Morte e Ressurreição de Osíris, no Egito, expressos em singulares interpretações do renascimento da vida e do sacrifício e triunfo de um deus cosmogónico. No mundo ocidental, a questão de Deus tem sido abordada por dois sistemas de pensamento antagónicos: o deísmo e o teísmo. A primeira destas correntes considera a razão como a única via capaz de assegurar e provar a existência de Deus; a segunda, de base fideísta, afirma a existência de um Deus único, pessoal e transcendente, criador do universo e do homem. O deísmo começou por ser defendido e difundido pelo enciclopedismo europeu (uma emanação cultural do iluminismo do séc. XVIII), e rapidamente se espalhou pela literatura e pela arte em geral. Contrariamente, o teísmo é um sistema de crenças que vem do fundo dos tempos, com particular relevância para as tradições judaico-cristã e islâmica. Fora deste universo, sempre existiram as mais diversas etiologias religiosas, independentemente de o culto ser de base mais mítica, histórico-política ou espiritual. Se o homem contemporâneo, conectado maquinalmente com os mass media, não tem tempo para meditar na solidão do seu quarto, conforme a filósofa judia Hannah Arendt notou em Men in Dark Times (1968), ao menos que não profira juízos vazios de sentido no espaço público, sob pena de estar a contribuir para a ignorância generalizada das novas gerações. Já não se espera que nestes tempos de destruição iconoclasta o homem regresse ao pensamento dos grandes filósofos do helenismo, à doutrina dos doutores da Igreja e ao cogito do iluminismo europeu. Já não se espera. Espera-se, ao menos, que não seja boçal e fátuo nos assuntos sérios e complexos da existência de Deus, e que tenha mais cuidado com a exposição mediática de um pessimismo radicalmente pobre, quer do ponto de vista da História, quer do ponto de vista da Filosofia. De resto, o diálogo: “Acreditas em Deus? Não!” é, já de si, um paradoxo inextricável, porque a noção do Deus enunciado é de tal modo absoluta, que não cabe no relativismo de um simples advérbio de negação. Tenho dito.
Autor: Fernando Pinheiro
DM

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11 janeiro 2020