A cultura popular francesa manteve uma matriz cristã até meados do século XX, embora a elite intelectual e política dominante fosse já laica, republicana e profundamente anti-religiosa.
Em 2004, Jacques Chirac proibiu a ostentação de símbolos religiosos nas escolas – a burca, o crescente e a cruz. O laicismo francês, mais do que reiterar a separação da Religião e do Estado e querer manter o factor religioso fora da esfera do político, sempre assumiu uma hostilidade activa, articulada e incessante à Igreja, às igrejas e à religião em geral. (…)
Em França, a laicité não foi tanto uma aplicação do princípio de separação, na teoria e na prática, do reino de Deus e do reino de César, mas antes uma forma de combate à Igreja Católica.
A guerra tinha raízes na ilustração voltairiana e, depois, na Revolução Francesa, com os massacres de católicos na Bretanha e na Normandia, até ao armistício napoleónico. (…)
O laicismo francês foi sendo exportado para os partidos progressistas e socialistas da Europa do Sul e América Latina, como Portugal e o México, onde a guerra contra a Igreja foi uma prioridade política. Em Espanha, em 1936, viria a dar lugar à perseguição e ao assassinato de milhares de religiosos e religiosas.
O conflito manteve-se em França ao longo do século XX, agudizando-se nos anos 30, com a radicalização política, causada pelo aparecimento na Europa dos movimentos comunistas e fascistas. (…)
Um dos objectivos da laicidade fora sempre a emancipação ética dos valores familiares e dos costumes sociais dos “preceitos divinos”, libertando-os da moral religiosa. Daí a luta pela escola pública, a expulsão das congregações religiosas, o fecho dos seus colégios e a cessação dos apoios do Estado aos seus institutos.
Com o Maio de 68 chegava à Europa, via França, o mesmo espírito com outros matizes e por novos caminhos. A mensagem anarcopacifista da Califórnia e do movimento hippie norte-americano trazia uma contestação que abrangia a moral religiosa, mas também a moral republicana, repudiando em bloco o sistema de valores e instituições tradicionais – uns religiosos, outros laicos: “só era proibido proibir”. (…)
Mas a partir de Maio de 68, os valores e conteúdos dessa moral laica e republicana, mesmo em competição com o cristianismo vinham laicizar princípios cristãos, eram substituídos pelo individualismo hedonista e consumista, que se reforçaria com o fim da Guerra Fria e a globalização. Esta ética individualista e libertária via, naturalmente, as religiões como inimigas, já que o islamismo, o catolicismo, o cristianismo ortodoxo e as Igrejas protestantes organizadas tinham códigos e interditos, sobretudo em termos de moral sexual.
É este o espírito de que é herdeiro o Charlie Hebdo, um espírito anti-religioso activo, agressivo, contra as religiões monoteístas estabelecidas, “sobrevivências do obscurantismo e inimigas naturais da liberdade libertária”, mas que no entanto se arrogava neutro, rigorosamente isento, indiferente à crença ou à descrença.
Agora o ataque era ao coração das religiões, mais do que aos seus interditos; um ataque à própria noção do Sagrado, ao centro vital da espiritualidade e da religiosidade.
Era aqui que na pós-modernidade se concentravam os velhos anarquistas e os novos laicista – esperando as reacções dos ofendidos». (O ISLÃO E O OCIDENTE – A GRANDE DISCÓRDIA – de Jaime Nogueira Pinto, Edições D. Quixote)
Na verdade vieram as reacções e continuam a vir, por isso se apresenta tão oportuno quanto necessário fazer um esforço de memória para tentar compreender o porquê de algumas situações que não são tão lineares como nos querem fazer parecer. Nada acontece por acaso…
Autor: Maria Susana Mexia