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A outra sopa de pedra

É conhecido que a sopa de pedra está associada à lenda do Frade e do seu engenho em fazer uma sopa deliciosa. Certo dia, chega a uma localidade com fome, mas negaram-lhe comida. Bate à porta de casa de um lavrador, mostra uma pedra e pede uma panela com um pouco de água, para fazer uma sopa de pedra o que este, por ser tão pouco, faculta. Aguçando a incredulidade do anfitrião, vai pedindo um fiozinho de leite, um pouco de carne, enchidos, feijão, batata, coentros. Come a suculenta sopa e leva a pedra consigo para uma outra vez.

Na concretização física das Jornadas Mundiais da Juventude parece que estamos a assistir à sopa de pedra invertida, no plano de atuação do Estado e na modelação a que o governo procede na opinião pública. Como se sabe, a decisão sobre o local onde se vai realizar a Jornada foi tomada pelo Patriarcado de Lisboa, pelo Governo, pelas Câmaras de Lisboa e Loures e pelo presidente da República. O Patriarcado só apresentou a candidatura depois de avaliar junto das autoridades civis a viabilidade, os locais e apoios necessários. Todas as entidades rejubilaram quando o Papa atribuiu as jornadas a Lisboa e o comunista Bernardino Soares, assumidamente não católico e então presidente da Câmara de Loures, não hesitou em alocar 9 milhões de euros do orçamento municipal porque sabia do retorno de 5 a 10 vezes do valor investido, para além da revitalização duma zona inútil do concelho.

Acomodar em Portugal uma das maiores concentrações humanas e juvenis do planeta, com tudo o que isso representa em termos de organização, com mais de um milhão de visitantes, revitalizar toda uma zona ex-novo, permitir que o Papa se faça acompanhar de cerca de 2.000 pessoas no altar principal, com uma visibilidade externa em todos os países do mundo, pretendendo mostrar a todos os cantos do globo um pais moderno, organizado e tecnologicamente evoluído, atrativo para o investimento e para o turismo, custa milhões, pois não se pode ter um retorno de 700 milhões de euros (ME) com um investimento de tostões.

Ora, a pretexto do custo do palco-mor, que tanto jeito deu a António Costa, não só para afastar os holofotes dos gravíssimos problemas que o seu governo e os seus governantes enfrentam, mas também para menorizar Carlos Moedas, o presidente da Câmara de Lisboa eleito contra o acólito de Costa, Fernando Medina, procura-se fragilizar as Jornadas. Depois do compromisso assumido pelo Estado dum evento condigno com os anteriores, agora tira-se um altar, fica um palcozinho, o altar do Parque Eduardo VII fica sem efeito, instalações sanitárias talvez metade, tira-se o som, quem quiser que ouça na televisão, eletricidade nem pensar, é tudo à luz do dia. Agora pense-se se o Vaticano acompanhasse esse procedimento: reduzia-se a metade os peregrinos, transmissão televisiva não vale a pena e por último, possivelmente nem havia necessidade de vir o Papa.

Dizia Aristóteles que a política é a ciência que tem por objetivo a felicidade humana. Não se perspetiva outro evento desta dimensão que possa provocar oreencontro da alegria do abraço fraterno entre os povos e entre as gerações. Os jovens andam entusiasmados. Mesmo que o Estado e as autarquias gastassem 80 ME sem retorno financeiro, a felicidade que davam ao povo justificava por si só a despesa. Além disso, pense-se no retorno direto que o Estado vai ter em arrecadação de impostos, incluindo resultante do investimento da Igreja de 80 ME, em Iva nos consumos, IRC das empresas que vão aumentar os lucros com os serviços prestados ao evento e no IRS dos trabalhadores que vão auferir rendimentos nos trabalhos para essas empresas. Para promover o país em tudo o mundo com a magnitude que resulta da transmissão do evento, o Estado teria de gastar centenas de milhões de euros. Quanto ao benefícios da revitalização da área, basta ver o resultado da recuperação da zona ribeirinha com a Expo 98.

O que devíamos estar a escrutinar é o que se propõe o Estado e municípios fazerem com as elevadas receitas que vão ter com o evento e no modo como vão ser contratadas as despesas, pois a inércia de anos de “distração” não justifica a falta de transparência, restando terminar como Adão Silva no seu cartoon no Diário do Minho, quando coloca Francisco a dizer “Eu lá pedi um altar assim?!”. Desde que não desabe como esta semana em Kinshasa.


Autor: Carlos Vilas Boas
DM

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2 fevereiro 2023