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A ordem do dia, um dos livros do ano

A imagem mostra um homem que olha de frente para o fotógrafo. A indumentária é antiquada. Os colarinhos e a gravata parecem ser de um tempo mais antigo do que o dos sapatos engraxados. Tem um chapéu na mão direita e luvas que segura, com uns papéis, na mão esquerda. O rosto não é propriamente familiar. Pode ser alguém dos primeiros anos deste século ou do fim do século XIX. É preciso abrir o livro que tem este homem na capa para saber quem ele é. O nome aparece indicado logo no início, na ficha técnica: Gustav Krupp von Bohlen und Halbach. O fotógrafo é Georg Pahl. Gustav Krupp, como informa a Wikipédia, nasceu em 1870 e morreu em 1950. Foi um industrial alemão. Apoiou Adolf Hitler desde a primeira hora. Aparece no início e no fim de uma obra excepcional, uma narrativa escrita por Éric Vuillard, com o título A ordem do dia, editado em Abril pelas Publicações D. Quixote. É a Gustav Krupp que o escritor francês recorre para abrir e fechar um percurso pelos dias sombrios que antecedem a anexação da Áustria e o início da II Guerra Mundial. Não é uma grande personagem e não seria grande a memória que dele subsistiria, finda a leitura da narrativa, se não fosse a imagem exibida na capa. E, no entanto, nada há em A ordem do dia – um dos melhores livros do ano – que se possa considerar excedentário. Uma das passagens mais pungentes da obra – em que não escasseiam também as cenas patéticas – é, com certeza, a que refere uma notícia necrológica do jornal austríaco Neue Freie Presse: “No dia 12 de março, de manhã, Alma Biro, funcionária, de 40 anos de idade, cortou as veias com uma navalha, antes de abrir o gás. Nessa mesma altura, o escritor Karl Schlesinger, de 49 anos de idade, meteu uma bala na cabeça. Uma dona de casa, Helene Kuhner, de 69 anos, suicidou-se igualmente. Durante a tarde, Leopold Bien, funcionário, de 36 anos, atirou-se da janela. Ignoram-se os motivos do seu ato”. O dia 12 de Março reporta-se a 1938. Oitenta anos depois, no passado mês de Março, lembrando o momento em que o seu país foi anexado pela Alemanha nazi, o Presidente da República da Áustria disse que “a Wehrmacht alemã veio durante a noite, mas o desdém pela democracia, o desdém pelos direitos básicos e pela liberdade não vieram durante a noite”. Para Alexander Van der Bellen, a intolerância e a violência não vieram durante a noite. Por isso, “os austríacos não foram apenas vítimas, mas também perpetradores, muitas vezes em posições de liderança”. O narrador de A ordem do dia, evidentemente, concordaria, o que se compreende verificando que ele se indigna com a última frase da notícia do Neue Freie Presse. “Esta apostila banal causa imensa vergonha”. É que no dia 13 de Março ninguém poderia ignorar os motivos dos suicídios. “Ninguém. Não se deve de resto falar de motivos, mas de uma única causa”. Alma, Karl, Leopold ou Helene poderão ter visto, da janela, as incessantes perseguições infames a que os judeus estavam a ser submetidos, que o narrador exemplifica. “Terá mesmo bastado que lho tenham referido, que o tenham adivinhado, calculado, imaginado, antes até de acontecer. Ter-lhes-á bastado ver as pessoas sorrirem para perceber”. Perante a notícia das quatro mortes, o narrador de A ordem do dia conclui: “Em tal adversidade, as coisas perdem o nome. Apartam-se de nós. E deixa de poder falar-se em suicídio. Alma Biro não se suicidou. Karl Sclesinger não se suicidou. Leopold Bien não se suicidou. E Helene Huhner, também não. Nenhum deles se matou. A sua morte não pode identificar-se com a narrativa misteriosa das suas desditas. Não pode mesmo dizer-se que tenham escolhido morrer dignamente. Não. Não foi um desespero íntimo a devastá-los. A sua dor é uma coisa coletiva. E o seu suicídio, um crime cometido por outrem”. O Presidente da República austríaco, Alexander Van der Bellen, por certo não divergirá. De resto, não é necessário mais do que um módico conhecimento de História para entender devidamente a dimensão das tragédias que podem ocorrer quando demasiado ódio se mobiliza contra um qualquer bode expiatório. O mais abominável dos regimes, bem se vê lendo A ordem do dia, não consegue nascer espontaneamente e sem um apoio amplo e convicto.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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4 novembro 2018