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A nossa democracia

1. Pretendeu-se com o 25 de abril de 1974 executar um programa sintetizado em três Ds: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver.

Hoje fico-me numa reflexão a propósito do primeiro D. E a verdade é que – em minha opinião, é evidente – para que exista entre nós uma verdadeira democracia há ainda um caminho a percorrer.

Não deixo de reconhecer importantes e decisivos passos que nesse sentido foram dados, mas exige-se mais.

Implantou-se a democracia ao som de «Grândola, vila morena, (…) o povo é quem mais ordena». Mas o povo não é, de facto, quem mais ordena. Protesta, às vezes, mas nem sempre é escutado. É mais usado do que servido.

2. Não defendo o igualitarismo utópico, mas a verdade é termos uma democracia onde existem inadmissíveis desigualdades e uma má distribuição da riqueza. Basta ver o quantitativo das pensões de reforma de uns e os salários milionários de outros. Para a generalidade dos cidadãos é necessário trabalhar até aos 65 anos, mas há quem se reforme antes dos 50. E não é para receber umas centenas de euros. Uns dão-se ao luxo de esbanjar enquanto outros têm de contar os cêntimos.

3. Temos uma democracia onde se praticam o nepotismo e o compadrio, como se a competência residisse numa meia dúzia de famílias e a democracia fosse compatível com a existência de castas de privilegiados.

Onde os cargos de maior responsabilidade nem sempre são ocupados pelos melhores mas para que se selecionam as pessoas pela sua filiação partidária ou pelo grau de parentesco.

Onde nem sempre se diz a verdade ao povo, mas é o dinheiro do povo que tapa buracos abertos pela incúria, pela incompetência, por interesses particulares ou partidários.

Onde se permite o acasalamento entre a política e os negócios. Onde o que devia ser a busca do bem comum anda ao sabor da força dos grupos de pressão.

Onde, para gente com poder político, só o público é que é bom, como se uma saudável iniciativa privada e uma sã concorrência não fossem vantajosas para o desenvolvimento do país.

Onde indivíduos que ocupam lugares de responsabilidade colocam a fidelidade ideológica acima do verdadeiro interesse do povo.

Onde se diaboliza a extrema direita e se endeusa a extrema esquerda, como se os dois extremos, porque prejudiciais, não fossem ambos de evitar.

Onde se intoxica o cidadão com futebol e informações de índole sexual.

4. Temos uma democracia onde, a pretexto de liberdade, se permitem a indisciplina e o desrespeito.

Onde a libertinagem se não distingue da liberdade e quem legitimamente quer exercer a autoridade é enxovalhado.

Onde se atua como se a liberdade fosse feudo de alguns e não direito de todos.

Onde há leis que se não cumprem e quem avança, em muitos casos, são os mais atrevidos.

Onde se ridiculariza o bom senso e aplaude o disparate.

Onde uns se consideram donos da verdade absoluta e recusam aos que não leem pela sua cartilha o direito de livremente se expressarem.

5. Temos uma democracia onde questões fundamentais como a saúde, a educação, a justiça andam ao sabor das oscilações partidárias. Onde uns, chegados ao poder, se julgam no direto de desfazer o que outros fizeram. Onde não existe a lucidez necessária para fazer acordos de regime e se legisla para uma e não para várias legislaturas. Onde os cidadãos são usados como cobaias e se abusa do experimentalismo.

Uma democracia onde nem sempre existe a desejável transparência na gestão dos dinheiros públicos. Onde nem sempre se pedem contas a quem geriu mal os bens da comunidade exigindo que assuma a responsabilidade dos erros cometidos e suporte as consequências dos danos causados pela sua negligência ou incompetência.

6. Tenho a consciências de lembrar realidades inconvenientes, mas a verdade é que são isso mesmo: realidades. Realidades que uma verdadeira democracia não deve tolerar.


Autor: Silva Araújo
DM

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25 abril 2019