Enquanto subia e descia lentamente a Avenida da Liberdade, na noite de S. João, e me cruzava com a multidão de foliões, fui refletindo sobre o poder das tradições e a transmissão das mesmas aos vindouros. Perguntava-me: quanto tempo esta noitada viverá? As minhas lucubrações eram outra companhia naquela noite de apitadelas e marteladas, a ponto de a familiar que me acompanhava me dizer, “ei, acorda, alô terra, estamos na noitada de S. João”. Na realidade a mente humana é uma “sopa prodigiosa” onde as ideias se interligam e desligam para criar outras realidades; aquela noite, estava a existir fora de mim, mas em mim. Naquela noitada, o politicamente correto era estar com os outros e, no entanto, deles me ia desligando; a divagação do pensamento para outros mundos, que não aquele que me rodeava, criava outra ordem de pensamentos. Do ponto de vista do politicamente correto, eu estava a tirar da “sopa prodigiosa” que é o pensamento humano, outras realidades, e também o sonho: Foi sonhando que a humanidade evoluiu de homem habilis a homem sapiens; são milhões de anos de evolução, marcados por aqueles que saltaram as barreiras para lá do velho mundo. As tradições de S. João podem estar a desaparecer numa sociedade tecnológica que já cá está, isto é, dos que estão a saltar para o mundo tecnológico, mundo que faz dos velhos letrados de dantes, analfabetos de hoje. O reino tecnológico pode matar o saudosismo das tradições? Na subida da avenida fui “atropelado” por um carrinho de bebé. A mãe nem sequer me pediu desculpa pelo toque nos calcanhares. É uma questão de educação. Certamente pensou que este velho deveria estar em casa a cabecear diante da televisão, em vez de ocupar espaço ao futuro que ela conduzia naquele carrinho de bebé, por entre a multidão. Mas olhando para aquele carrinho, e para outros que vi nessa noite de folias, e reparando simultaneamente para crianças de tenra idade que andavam acompanhados pelos pais e avós, fiquei a pensar se aquelas crianças, na sociedade de amanhã, serão transmissores destas tradições. Mas elas pertencerão a uma nova sociedade, a nova geração tecnológica, onde tudo será robotizado, onde a inteligência artificial reinará, onde os botões e os comandos serão ferramentas de uso comum: a sociedade comandada por um cérebro computadorizado. E vai ser interessante observar a “guerra” entre estes dois mundos; a da tradição contra a da inteligência artificial. Os dois estarão presentes na nova sociedade, sem disputa pela supremacia? A fusão em vez da bifurcação? Eu gostava que estas crianças da noitada pudessem continuar as tradições do S. João sem que isso implicasse ou prejudicasse a utilização da tecnologia. Mas tempos virão em que serão implantados nos bebés elementos computorizados de inteligências artificiais. À nascença serão vacinados contra tudo, mesmo contra a burrice. Esta sociedade será dirigida por um computador “deus” que dará ordens, transformando os humanos em humanóides Basta vermos o que faz a inteligência artificial, a física quântica e o aparecimento de uma ciência superlativa de comandos à distância. Mas isso não é para os nossos tempos, dir-me-ão. Talvez sim talvez não, mas não deixa de ser uma probabilidade; a sociedade, tal como a temos e conhecemos, vai ser “engolida” pela sociedade “dos implantes eletrónicos”. Assim, uma nova era civilizacional se nos apresenta. Apanhei com um martelão na cabeça e acordei para a noitada. Vejam, senhoras e senhores, se sou companhia que se deseje na noite das apitadelas e marteladas, na noitada do S. João de Braga!
Autor: paulo fafe
A noitada
DM
2 julho 2018