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A minha primavera

Entendam isto como uma pincelada verde no quadro escuro: a Primavera chegou e muitos só deram fé por causa do adiantamento da hora. As árvores cobriram-se de “folhas fresquinhas e verdejantes” como na cerejeira da canção de Guerra Junqueiro. Já faz tempo que ela vinha a anunciar-se na copa das árvores, no despontar das discretas aleluias, nas moutas pingando água e nos bandos de pássaros em revoadas piantes. É bonita esta “minha primavera” e é quase só minha porque os outros não lhe dão crédito algum. Porque assim a queria, pasmado me chamavam os moços da minha criação. A primavera este ano chegou e, da minha janela distingo-a, nos diversos verdes das copas das árvores do Parque da Ponte; folhagem moça em verde claros, as mais velhas em verdes escuros e aqui e ali outras cores marcam presença, formando matizes que só alguns reparam; as árvores da cidade, podadas a preceito são meninas de coro, só lhes faltam uns laçarotes para irem à missa do Domingo, de mãos dadas com as mamãs. Estão domesticadas. São meninas de colégio. Usam cabelos cortados à circunstância. Gosto delas? Gosto, mas também gosto das da minha infância que cresciam selvagens, levantando os seus ramos ao cimo como dedos que se erguem ao céu em adoração ao Criador. Mas vejo-a, agora, do confinamento da minha janela e, pela nesga da varanda, consigo estar presente noutros verdes: no horizonte do Sameiro, Santa Marta e, descaindo os olhos, lobrigo o Bom-Jesus; são um postal ilustrado. Por isso eu penso que, a prisão a que me sujeito, por respeito pelos outros, tem algumas vantagens: obrigam-me a olhar para aquilo que dantes apenas via. É a predominância dos sentidos sobre a razão. Não demora nada e teremos aí as andorinhas; andorinhas que no meu passado “aos pares cruzavam-se voando em torno dos seus lares suspensos do beiral da casa onde nasci.” (ibidem) E ninguém esteve lá fora para receber a minha primavera. E, no entanto, veio na hora, sozinha, tão linda e taful como sempre e nós metidos em casa sem poder fazer as honras à visita, pelo menos com a cortesia de um bem-educado anfitrião. Compreensiva não se melindrou ou, se amuou, ninguém deu pelo amuo. Ela sabe que estamos atrás das cortinas, espreitando temerosos pelas janelas semiabertas, não vá o bichinho mau estar lá, como caçador furtivo, à espera dos incautos para os matar. De carne velha faz o seu banquete favorito. Mas nós falamos da Primavera, agradecemos-lhe a juventude que traz, a roupagem que usa, absorvemos-lhe os seus perfumes, saudámo-la com reverência, quer olhando para o Parque da Ponte onde os verdes embelezam os sentidos, quer recordando-a noutras primaveras, onde tudo eram risos de crianças e páscoa de adultos. Bem-vinda.


Autor: Paulo Fafe
DM

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6 abril 2020