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A Memória não se apaga

Muitos de nós interrogam-se, por esta altura, sobre o movimento antirracista que eclodiu primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa, tentando perceber o alcance das manifestações e o sentido que elas tomaram na remoção de figuras históricas de ruas, praças e avenidas. Fazem sentido e em que medida elas são proporcionais ao entendimento sobre as razões que assistem às pessoas que são vítimas diariamente da arbitrariedade policial, do desprezo alheio e da discriminação social? Há duas questões que têm de ser postas na mesa: a primeira é intrinsecamente cultural e remete-nos para a velha dicotomia sobre se o racismo que dizemos não tolerar é ou não um sentimento reprimido formal e socialmente, mas vivo nas atitudes quotidianas, no olhar de indiferença e na discriminação feita no acesso às oportunidades a que todos deviam ter direito em igualdade de circunstâncias; a segunda razão é política e histórica e deve merecer uma atitude firme, transparente e pragmática porque nas suas raízes subjaz a glorificação dos heróis nacionais para os quais só temos o espelho virtuoso das suas ações, alegadas descobertas e feitos. Afinal de contas somos ou não racistas, é verdade ou não que de forma jocosa diminuímos a integridade do outro pela sua cor, pela sua orientação sexual, pela sua personalidade? Ao invés de esgrimirmos argumentos palacianos sobre a tolerância com que alimentamos o nosso ego, negando a evidência dos factos, as maiorias brancas neste ou em qualquer outro país têm dificuldade de lidar com a diferença e tornam-na evidente em gestos, em conversas de café, na hora de escolher amigos, ou no momento de fazer escolhas no acesso ao mercado da sociabilização. A dita tolerância é a palavra chave dos racistas que atuam socialmente como magnânimos na “aceitação”, interpelando a injustiça que afirmam reconhecer, mas não combatem, que misturam no mesmo caldeirão, a visão quadrada que têm da vida humana com gestos de simpatia à distância. Se as ações a que agora assistimos nos parecem o corolário lógico de quem sente na pele que não foi feita a reconciliação histórica e civilizacional que muitos apregoam e outros não aceitam, é também claro que não podemos tolerar a opacidade dos manuais escolares e as práticas herdadas neste conflito que não é de hoje. Retirar, vandalizar estátuas não é uma solução aceitável, porquanto dela resulta o empobrecimento da história comum. Esta reconciliação passa inevitavelmente pela transparência e frontalidade com que devemos aceitar cada momento da história coletiva, procurando entender as circunstâncias em que os atos foram praticados, sem querer condenar o que na altura era uma pratica comum. O que aconteceu à estátua do padre António Vieira em Lisboa é um desencontro com a história e uma profunda e lamentável atitude de cobardia. Ao contrário do que hoje sucede, temos a obrigação de esclarecer sobre o significado atribuído à época em que erigimos as homenagens aos supostos heróis, esclarecer junto dos pedestais o que foram, o que fizeram, porque são homenageados assim. Hoje podemos analisar os argumentos evocados à luz dos valores e princípios que norteiam a nossa vida coletiva, mas julgar a história sem a perceber é um erro que não devemos tolerar. O que diriam os bracarenses se acordassem hoje com algumas das suas figuras históricas remetidas para o rio Este ou pinchadas de vermelho? Urge ter coragem para explicar às atuais e novas gerações o que aconteceu, sem medos, sem sentimentos de orfandade das referências positivas e das negativas que ocultamos ou silenciamos. Parece-me ser um bom caminho para termos pessoas esclarecidas, capazes de tecer de forma crítica opiniões sobre os méritos e deméritos de cada um que decidimos endeusar ou simplesmente recordar. A ignorância, o desprezo e a intolerância com a verdade da história só alimenta o ódio, diminui a visão que devemos ter e alimenta as fontes de racismo que queremos combater. Sem desprezar o mérito da iniciativa, espero que o evocativo Museu das “Descobertas”, em Lisboa, deixe para trás a velha ideia de que descobrimos algo que já existia e se concentre em mostrar para o bem e para o mal o papel dos navegadores portugueses e o seu lugar na história.
Autor: Paulo Sousa
DM

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15 junho 2020