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A leitura de Sócrates

A entrevista do Presidente do STJ, pouco tempo antes da decisão instrutória do processo Marquês, deixava antever o turbilhão que se seguiria. A um mês de se jubilar, António Piçarra declarava que a decisão instrutória seria um teste à resiliência da justiça e também da política.

Resiliência significa na física a propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação e no sentido figurado a capacidade de recuperar de adversidades. Será tarde de mais para que a Justiça volte à sua pureza original, se alguma vez existiu. Ponderando todos os megaprocessos que ocorreram e decorrem neste século (BPN, BES, Casa Pia), talvez mude algo, mas, parafraseando Tomasi di Lampedusa, não será para que tudo continue na mesma?

A abordagem do assunto pelo Juiz Conselheiro nada teve de naïve, a perceção do que seria decidido não assentava em poderes divinatórios. Nem foi casual o reconhecimento da incompreensibilidade do tempo excessivo da investigação, da concordância com a separação dos megaprocessos e, sobretudo, da proposta da instrução apenas para que um juiz avalie o arquivamento de um inquérito e, nos casos em que há acusação, limitada à avaliação das provas produzidas na investigação para levar o caso a julgamento. “A instrução deveria ser apenas a comprovação judicial do arquivamento ou da ida ao julgamento. O juiz de instrução não é um julgador nem um investigador” disse.

Não se veja aqui violação do segredo de justiça nem se espere que o presidente do STJ e do CSM ande distraído. Também Marcelo remeteu a “lei da eutanásia” ao TC sem invocação da violação do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, com prévio conhecimento que apenas quatro Conselheiros do TC acolheriam tal entendimento. Com base no argumento da indeterminabilidade dos conceitos foi possível obter maioria na decisão da inconstitucionalidade. Como muitos outros cidadãos, o presidente da República certamente entende que existe essa violação, mas como político levou assim a bom porto pelo menos uma primeira etapa.

Revertendo ao caso, a crítica que me parece mais acertada é a que afirma que mais parece estarmos perante uma sentença do que uma decisão instrutória. Para a pronúncia basta a recolha de indícios suficientes. Senão pouco resta para o julgador, aqui um provável coletivo de três juízes que ficaria privado de julgar toda a matéria relevante para uma decisão justa. Os adjetivos utilizados para desqualificar a competência dos Procuradores, por desnecessários, ferem a credibilidade e a confiança na Justiça. E o tempo da Justiça não pode ter a elasticidade ao sabor de quem a exerce.

Num processo tão mediático pedia-se uma decisão convincente. A maioria dos portugueses, confrontados com Ivo Rosa peticionariam como o Padre Antonio Vieira “Mostra-me porque (me) julgas assim”, pois estão confusos. Sucessivas declarações contraditórias e indistintas quanto ao que são indícios, provas, factos e enquadramento jurídico não ajudam. Sete anos depois da prisão preventiva de José Sócrates, anos e anos de investigação de muitos arrasados por um só?

A perplexidade aumenta quando é reconhecido que tudo seria diferente fosse o juiz de instrução Carlos Alexandre. A insegurança é grande quando existem apenas dois juízes e logo tão diferentes no “Ticão”. Mas a Justiça resume-se a uma questão de sorte, os mesmos indícios levariam a decisões opostas fosse um ou outro Juiz?

A resposta pode ser afirmativa, mas a crença na Justiça pode manter-se por efeito dos mecanismos de recurso. Os Tribunais superiores servem em muito para normalizar as diferentes visões dos juízes de primeira instância. Hoje lê-se que desembargadores da Relação de Lisboa se queixam que a decisão de Ivo Rosa afronta e revoga decisões intercalares transitadas já tomadas por Tribunais superiores. Isso pode ser perseguido disciplinarmente, mas não justifica uma petição pública para expulsão do juiz da magistratura.A imparcialidade e inamovibilidade dos juízes não podem ser decididas na praça pública. A decisão instrutória, do ponto de vista processual, tem reduzida importância, no sentido que será reavaliada por um Tribunal superior e sentenças só em Tribunais de julgamento, eventualmente no próprio STJ.

A sobranceria atual de Sócrates é prematura, a sua leitura tão própria é estratégica. Como pode cantar vitória quem ouviu do Juiz que aprecia que se deixou corromper e branqueou capitais enquanto primeiro-ministro?


Autor: Carlos Vilas Boas
DM

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15 abril 2021