twitter

A «geringonça»

Foi um lance de táctica política de inegável mestria de António Costa, que assim abriu um novo horizonte parlamentar e governativo na nossa democracia.

A palavra geringonça é relativamente antiga na língua portuguesa, pois encontra-se atestada na comédia Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos (?1515-1585), jurista que desempenhou diversos cargos ligados às finanças públicas, entre os quais se destaca a alta função de Tesoureiro do tesouro real, durante a regência do Cardeal Infante D. Henrique e depois durante o reinado de D. Sebastião.

Notabilíssimo dramaturgo, escreveu três grandes comédias – Eufrosina, Ulissipo e Aulegrafia –, que são um repositório de riqueza inigualável da língua portuguesa do seu tempo. Como nenhum outro autor quinhentista, soube aliar criativamente a língua culta e a língua popular.

Ora na comédia Eufrosina, que foi escrita, segundo demonstrou o insigne filólogo Eugenio Asensio, em 1542-1543, e de cuja edição princeps, datada de 1555, subsiste um único exemplar, conservado na Biblioteca Nacional de Espanha, a personagem Andrade, criado da personagem Zelótipo, utiliza a palavra gerigonça – a nasalização da antepenúltima sílaba, fenómeno de assimilação regressiva, é posterior – a propósito das inexplicáveis contradições sociais e éticas da condição humana: «Os honrados são pobres, os ricos vilãos roins, concertai-me esta gerigonça» (acto terceiro, cena segunda).

Trata-se de um vocábulo de origem castelhana, jerigonza, já registado no Tesoro de la lengua castellana o española de Sebastián de Covarrubias (1611), cujo significado primeiro, como autorizadamente ensina o Dicionário da língua portuguesa de António de Moraes Silva – utilizo a edição de 1891, é o seguinte: «Língua de gíria, inventada por ciganos, vadios, e ladrões, para não serem entendidos».

Em sentido figurado, segundo o mesmo lexicógrafo, significa «cousa exótica, que se não pode bem descrever, ou explicar». O Dicionário da língua portuguesa de António Houaiss (2003), depois de registar o acima referido significado do vocábulo, que deriva de um distante étimo occitânico, acrescenta: «o que é malfeito, com estrutura frágil e funcionamento precário». Dir-se-ia que Paulo Portas, ao designar por geringonça a construção político-partidária do Governo chefiado por António Costa, adoptou ipsis verbis o significado figurado que se encontra estabelecido no Dicionário de Houaiss.

Contra as expectativas do eleitorado de direita e de centro-direita e de uma não despicienda parcela do eleitorado do próprio Partido Socialista, a geringonça funcionou durante o primeiro ano sem conflitos graves e ainda menos sem fracturas irreversíveis. A sociedade portuguesa, após quatro anos de políticas de austeridade rigidamente ortodoxa que provocaram uma profunda crise social, necessitava de reencontrar um horizonte de distensão e de esperança.

O Partido Socialista, graças à geringonça, instalou-se no poder, sendo justo reconhecer que o discurso político do Primeiro-Ministro tem sido habilmente equilibrado e ideologicamente não dogmático. E tem usufruído do apoio benevolente do Presidente da República. Por sua vez, os partidos da esquerda parlamentar que aceitaram o acordo da geringonça representam uma parte relevante da sociedade portuguesa e têm nos seus programas projectos e propostas que podem contribuir para tornar Portugal um país com mais justiça social, mais fraterno e menos corrupto.

Tenho fortes dúvidas, todavia, sobre a durabilidade da geringonça para além de 2017. A matriz política do Partido Socialista dificilmente será conciliável com as orientações ideológicas e as propostas programáticas dos partidos da esquerda parlamentar. Não será possível ser fiel aos compromissos exigidos pela União Europeia e manter o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português. Estes partidos, por sua vez, não podem correr o risco de desfigurar a natureza profunda do seu ideário e dos seus programas políticos a troco dos pratos de lentilhas que a geringonça lhes pode proporcionar.

Depois das eleições autárquicas, o Partido Socialista vai decerto ter a tentação legítima de provocar eleições legislativas antecipadas, podendo assim pôr termo à experiência da geringonça.
Os partidos que, neste momento, representam a oposição parlamentar, se têm ouvidos, que ouçam a tempo este aviso…

O autor não escreve segundo o chamado «acordo ortográfico».


Autor: Vítor Aguiar e Silva
DM

DM

2 janeiro 2017