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A fronteira

Existe uma fronteira muito ténue mas bem significativa entre a frontalidade e a boa educação. Calar, muitas vezes é confundido por inibições como a subserviência ou timidez, quando na verdade é muitas vezes um ato de educação. Dizia alguém que a franqueza é a antecâmara da má educação. É certo que a fronteira é ténue e muitas vezes os seus contornos são similares, mas também é certo que haveremos de ter cuidado ao sermos francos se não magoamos com a nossa franqueza. Deus disse, ai do escandaloso e não disse ai do pecador e se o disse entendia que a franqueza pode constituir-se em esmagamento de outrem sem que isso venha a produzir os efeitos de um novo trilho para quem errou. Há também quem confunda personalidade com teimosia. Se alguém teima em impor o seu pensamento, porque se julga senhor da verdade, dizemos que tem uma personalidade forte em vez de o apelidarmos de teimoso. Esta pessoa que se julga juiz dos outros porque faz parte da sua personalidade, encaixa e encarna com total encaixe no grupo dos que teimam em dizer a verdade de uma maneira escandalosa. O escandalizado depois toma uma destas duas posições: ou se revolta e torna-se um marginal, ou se submete e torna-se um capacho de si mesmo. Ao anular-se está pronto a suportar toda a carga que lhe queiram por às costas porque alguém com a franqueza que o derrotou vergou-lhe a coluna que o mantinha direito e fez dum tronco que se levanta do chão um arbusto que rasteja nela. Então devemos deixar passar o erro, a mentira, o desvio, por amor à restauração do ente em causa? Também não, mas se a mão direita esconde da esquerda o que oferece, de igual maneira a boa educação esquece a brutalidade da correção. À parte, se possível ciciado, devemos abrir a porta do bom trilhar sem alarde ou quaisquer ares de guru. Custa-me olhar para os pelourinhos por aí espalhados porque penso em como deveria ter sido doloroso ser punido em público; julgo que mais doloroso do que os castigos corporais infligidos ao corpo. O descrédito público é a aniquilação da pessoa, é atirar com ela para o fundo do poço onde não há luz para a emenda nem espaço psicológico para uma regeneração. Dizia-me há pouco um recluso: “o que mais me custou, quando me prenderam por dívidas, foi ver nos meus dois filhos, o medo de serem filhos de um recluso”. Veio-me à lembrança o podador de Favoles, Jean Valjean, d’Os Miseráveis; diz-nos Victor Hugo que foi para as galés por ter roubado um pão para dar de comer aos sobrinhos esfomeados. Quantas vezes fazemos vários Jean Valjean, com a nossa frontalidade quando os poderíamos refazer com a compreensão do bispo de Digne! A frontalidade sem educação é com um bolo sem açúcar. Parece apetitoso mas não se pode tragar. A ciência de saber ser, reside no saber sentir. A lei que condenou às galés o podador de Favoles, tem a mesma arrogância da frontalidade. Se os equilibristas se conseguem manter em cima de um arame oscilante, por que razão não poderemos nós ter equilíbrio certo, entre a frontalidade e a boa educação? A fronteira é ténue mas ela existe.


Autor: Paulo Fafe
DM

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3 janeiro 2022