As notícias sobre pessoas que necessitam de ajuda para comer têm sido constantes. Muitas têm como fontes principais as organizações não-governamentais que se têm incumbido de apoiar os mais necessitados. Frequentemente, dando conta da gravidade da situação, apelam a que se lute contra a fome e contra a pobreza, uma tarefa que é sempre prioritária nas sociedades que se querem solidárias e justas. E às notícias sobre a fome juntam-se as que são sobre a vontade de comer.
Uma reportagem emitida há dias em diversos serviços noticiosos da RTP deu conta, por exemplo, de uma empresa têxtil, em Lousada, em que os trabalhadores foram instados a entrar à socapa para que a entidade patronal pudesse dizer que a laboração tinha sido interrompida pela pandemia e, desse modo, garantir a recepção de indevidos apoios financeiros do Estado[1].
A vontade de comer não se manifesta apenas, evidentemente, de forma fraudulenta. A quantidade dos que se têm apressado a, de algum modo, encontrar a “janela de oportunidades” para beneficiar com a crise sanitária é assaz significativa.
Há os que se aproveitam e inventam para cobrar aos utentes uma espécie de taxa coronavírus. Uma esguichadela de gel desinfectante, que é disponibilizada gratuitamente nas lojas decentes, é cobrada nos sítios de ganância premium como uma edição especialíssima do Golden Delicious de DKNY. Os que constantemente se abespinham a criticar “as taxas e as taxinhas”, quando se trata do privado, encolhem-se sem barafustar. De resto, as situações de apuros são sempre as mais oportunas para os habitués da extorsão legal.
Em vez de olharem directamente para a carteira do cliente, outros há que se focam nos cofres do Estado. A ele se dirigem, manifestando algum queixume capcioso para reclamar que alguma coisa lhes toque na hora de distribuição de subsídios. Estes lesados do coronavírus comportam-se como aquele vigarista, detido recentemente, que “exigia dinheiro aos restaurantes alegando ter encontrado vidros na comida”[2]. Forjam problemas para degustar apetitosos apoios gourmet. O pão de uns são as trufas de outros.
E o Estado que a todos, agora, deve acudir era, há pouco, invectivado quando se mostrava renitente em se acomodar ao papel de espectador de um capitalismo que nem sequer podia ter um módico de regulação. Os que não gostavam do Estado intrometido são os mesmos que agora o convocam para tratar mesmo do que não lhe deve incumbir.
Em Portugal, a crise de saúde pública tornou evidente que, como pertinentemente observou há dias a ministra da Saúde, Marta Temido, nos momentos em que fez falta o sector privado da saúde desapareceu[3]. Comportou-se como diz um verso de uma conhecida canção dos Deolinda: “Vão sem mim, que eu vou lá ter...” Ou, se se preferir, como canta também Ana Bacalhau: “Agora não, que eu acho que não posso”.
Que não podem quando é preciso, bem se sabe. No início da semana, na imprensa europeia, ecoou uma denúncia das organizações não-governamentais Global Health Advocates e Corporate Europe Observatory, que acusaram as grandes farmacêuticas envolvidas em parcerias público-privadas com a União Europeia de terem impedido a investigação sobre coronavírus proposta por Bruxelas em 2018[4]. O lóbi da indústria farmacêutica – o European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations – opôs-se à bioprevenção, que permitiria responder a epidemias como a causada pelo novo coronavírus, covid-19, refere uma das conclusões do estudo divulgado em Portugal pela agência Lusa.
Diz o documento que a indústria farmacêutica, nos últimos doze anos, beneficiou de 2,6 mil milhões de euros do orçamento público de investigação da União Europeia, “mas até agora falhou em investir significativamente em áreas de pesquisa onde o financiamento é urgentemente necessário”. Em vez de fazer o que era mais útil, “a indústria farmacêutica usou sobretudo o orçamento para financiar projetos em áreas que eram comercialmente mais rentáveis”. Um investigador do Corporate Europe Observatory, Martin Pigeon, fez notar que “o que está em jogo aqui é a captura corporativa de grandes áreas da política e dos orçamentos de pesquisa da União Europeia, às custas das necessidades públicas, da nossa saúde e da saúde do nosso planeta”. As trufas de uns é a fome de outros.
[1] https://www.rtp.pt/noticias/economia/fraude-empresas-que-recebem-pelo-lay-off-mantem-a-producao_v1229472
[2] https://sol.sapo.pt/artigo/696568/detido-homem-que-exigia-dinheiro-aos-restaurantes-alegando-ter-encontrado-vidros-na-comida-
[3] https://www.rtp.pt/noticias/politica/marta-temido-critica-hospitais-privados-por-faltarem-em-momento-de-necessidade_v1230494
[4] https://www.jn.pt/mundo/lobi-farmaceutico-bloqueou-bruxelas-na-investigacao-aos-coronavirus-em-2018--12234332.html
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
A fome e a vontade de comer

DM
1 junho 2020