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A devoção alheia e o benefício próprio

É preciso libertar a fé dos laços com o dinheiro”, dizia um título deste jornal na segunda-feira, dando conta de uma afirmação do Papa Francisco proferida no dia anterior na Praça de S. Pedro. “Como é importante libertar o sagrado dos laços com o dinheiro”, explicou o Papa, acrescentando que não se pode servir a Deus e ao dinheiro.

Sobre o modo como o diabo se pode imiscuir, fazendo com que o dinheiro instrumentalize a fé, escreveu Eugenio Montale, Nobel da Literatura em 1975. No conto “A promessa do Pastor” [1], relata-nos uma história protagonizada pelo pastor Udria. O carroceiro Mário Ruocco, certa noite, depara com ele, desesperado, junto de uma imagem de Nossa Senhora. Interrogando-o sobre a razão da angústia, fica a saber que o pastor tinha pedido à Virgem Maria que o ajudasse a ganhar o totoloto. A solicitação tinha sido parcialmente atendida. Udria tinha acertado em três números e a consequência tornou-se um drama, cujos contornos o pastor explicou ao carroceiro.

A ambição de Udria era ter a casa, uma pequena casa, que nunca tivera. Pediu ajuda a Nossa Senhora, combinando que lhe faria uma capelinha mais bonita do que aquela em frente da qual agora estava, amargurado, se acertasse em três números do totoloto. O problema é que, soube ele depois de falar com um pedreiro, a capela custaria mais do que aquilo que tinha ganhado. “Assim não só renuncio à casa, como tenho de pedir um empréstimo. E depois como é que o pago?”

Diz o narrador que eram vãos os conselhos de Mário Ruocco para que Udria renunciasse ao prometido. O pastor respondeu-lhe: “O acordo com Nossa Senhora estava claro, tinha-lhe explicado tudo sobre a capela e ela concordava. Até me recomendou que dentro houvesse uma jarra de vidro pintado como aquela que tem o farmacêutico na loja. Ela fez-me o favor e eu não posso decepcioná-la. A culpa é minha por não ter combinado antecipadamente o que queria ganhar. Mas como é que se pode falar de dinheiro com a Virgem Santíssima?”

A história prossegue revelando os efeitos que teve a divulgação da história pelo carroceiro: o pastor começou a receber materiais e dinheiro para honrar a promessa. Um dos doadores enviou-lhe uma grande quantidade de dinheiro dizendo que tinha sido colocada de parte para agradecer a S. José pela cura do filho. Reencaminhava-o agora para o pastor sem problemas de consciência: “De qualquer maneira, se fizeres a capela para a mulher dele, fica em família”.

O que recebeu em dinheiro (não contando com o material para a obra) era tanto que lhe permitia construir a capela e a casa. Mas o efeito do excesso de dinheiro fez despertar o adormecido instinto de negociante. Udria, nada dizendo sobre a elevada quantia que lhe tinha chegado às mãos, “começou descaradamente a mendigar e a contar, de maneira cada vez mais patética, a sua história por todas as aldeias do vale”.

O dinheiro quadruplicou, tendo por consequência que Udria se despedisse do campo e fosse para a cidade. Tornou-se proprietário de uma bonita casa e de três habitações de aluguer que lhe proporcionavam um significativo rendimento. “E a capela? Construiu com as suas próprias mãos uma pequenina feita de tijolo, lá no fundo do seu jardim. E a quem se atrevesse a censurar a sua parcimónia, agora já esperto, seria capaz de responder que ‘o que conta é a intenção’”.

O conto termina com uma alusão à reprovação de Udria por parte dos seus antigos benfeitores. Com eles é que Nossa Senhora se deveria ter entendido. “E não se percebe bem, pelo tom, quanto de crítica e quanto de inveja havia naquelas conversas que se propagaram incansáveis e sempre iguais de um lado e do outro do vale”.

O diabo é, de facto, um constante intrometido e o pastor Udria não foi, com certeza, o primeiro, nem, helás, o último a aproveitar-se da devoção alheia para benefício próprio – ou para desperdício geral.

[1] In Viagem Florença-Génova e outros relatos insólitos. Âmbar, 2002.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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14 novembro 2021