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A arte ao serviço da cleptocracia

Um singular efeito colateral da efervescência mediática da semana por causa de Isabel dos Santos e do dinheiro que subtraiu a Angola foi devidamente assinalado por Francisco José Viegas no Correio da Manhã de terça-feira e diz respeito à “curiosa associação entre ‘arte contemporânea’ e ‘altíssimos negócios suspeitos’”.

O escritor apresenta três exemplos eloquentes: “o notabilíssimo Sindika Dokolo, marido congolês de Isabel dos Santos, é ‘colecionador de arte’”; “Roman Arkadyevich Abramovich, dono do Chelsea, não só financiou artistas contemporâneos como bateu os recordes das leiloeiras, com os 61 milhões de euros para um quadro de Francis Bacon ou 31 milhões para um de Lucien Freud” e “os emires árabes não só levaram para os estados do Golfo um Louvre construído à medida como se transformaram em grandes albergues para a ‘arte contemporânea’ vizinha das artes decorativas, da arquitetura de interiores e do colecionismo de trivialidades”.

A “curiosa associação entre ‘arte contemporânea’ e ‘altíssimos negócios suspeitos’” poderia ter levado Francisco José Viegas a outras conversas, mas o escritor optou por assinalar, por fim, que “por um lado, os bilionários gostam de artistas à sua volta, porque acreditam no seu efeito naftalina; por outro, como a ‘arte’ gosta de os apalhaçar, dão uma imagem de tolerância e de certa inteligência”. Pelo meio, circulam, como o escritor finalmente observa, “bons curadores, comissários e tolinhos que fazem pela vida e escrevem coisas que se não entendem de propósito”.

A outro propósito, também aqui, no dia 1 de Março de 2015, se tinha já referido o deplorável espectáculo que se verifica nos circuitos dominantes da arte contemporânea caracterizados pelos seus negócios exorbitais. Entre as mais veementes vozes que o têm denunciado, desconfortando os “idiotas úteis” da crítica de arte, recordavam-se as do urbanista Paul Virilio e do artista Enrico Baj. Na conversa entre os dois, de que resultou o livro Discorso sull’orrore dell’arte (Milão: Elèuthera Editrice, 2007), Enrico Baj evocou a companhia de outros críticos ilustres: “A arte moderna e contemporânea foi atacada em todos os seus flancos e por grandes intelectuais como Antonin Artaud, Roger Caillois, Claude Lévi-Strauss ou, mais recentemente, por Cornelius Castoriadis, Jean Baudrillard, Gilles Lipovetsky, Umberto Eco ou Norbert Lynton”.

Explicando que “os poderes económicos, usando as suas fundações, as suas colecções e as suas casas de leilões, querem dirigir a globalização da arte”, Paul Virilio manifestou durante o diálogo uma sabedoria útil e uma eficaz contundência: “A inflação do mercado da arte é um delírio que tem muito mais a ver com as multinacionais do que com a expressão artística. Tem a ver com a possibilidade de branquear o dinheiro do narco-capitalismo; é inclusivamente um elemento prévio do narco-capitalismo”. Para o urbanista, “este não se circunscreve ao tráfico de drogas, mas inclui a possibilidade de criar uma economia paralela. Junto às drogas, aos alucinogénios, está a arte, especialmente a moderna e contemporânea. Isto explica a irrupção em massa dos publicistas, como Saatchi e outros, neste âmbito. Um publicista pode transformar qualquer um num artista capaz de vender por milhões uma fotografia”.

Paul Virilio considera, noutro momento da conversa, que estamos perante “um delírio”. Isto significa, diz ele, “que as coisas já não têm valor. É a desmesura do valor. Warhol já não é ‘cotado’, é ‘delirado’. A sua assinatura é a marca de um produto a que se atribui um valor excessivo. Tudo isto já não tem a ver com a arte, com Cézanne, com Braque, com Picasso. Tudo isto tem apenas a ver com uma lógica comercial no sentido mais banal do termo. Estamos perante um delírio desbocado que me recorda uma frase do grande Heráclito: ‘mais vale apagar a desmesura do que um incêndio’”.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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26 janeiro 2020