Quando, 50 anos depois das primeiras eleições em liberdade, Portugal está prestes a eleger uma nova Assembleia da República, ecoam ainda, vibrantes, os encorajamentos do Papa Francisco à participação e ao aprofundamento da democracia. Os incitamentos foram constantes, assinalando que importa a participação de todos naquilo que a todos diz respeito. “O coração da política é a participação”, afirmou Francisco, por ocasião da 50.ª Semana Social, no dia 7 de Julho do ano passado em Trieste, Itália.
Ao reflectir sobre as semelhanças que se poderiam encontrar entre uma democracia e “um coração curado”, o Papa exemplificou, chamando a atenção para diversas realidades: para “quem, numa actividade económica, criou espaço para pessoas com deficiência”; para os “quatro trabalhadores que renunciaram a um direito seu para impedir que outros fossem despedidos”; para as “comunidades energéticas renováveis que promovem a ecologia integral, cuidando inclusive das famílias em pobreza energética”; para “os administradores que favorecem a natalidade, o trabalho, a escola, os serviços educacionais, as casas acessíveis, a mobilidade para todos, a integração dos migrantes”. Tudo isto decorre de uma política participativa. “São estas as coisas que a participação faz, um cuidar de tudo”. Não é “beneficência”, é cuidar de tudo.
Na encíclica Fratelli Tutti, sobre a Fraternidade e a Amizade Social, o Papa tinha pedido: “É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena sermos bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento de uma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente”.
A intervenção do Sumo Pontífice na 50.ª Semana Social versou igualmente o “coração ferido” de uma democracia em crise. “Se a corrupção e a ilegalidade mostram um coração ‘enfartado’, são também preocupantes as várias formas de exclusão social”. É que, como assinala o Papa, “cada vez que alguém é marginalizado, todo o corpo social sofre”, verificando-se que “a cultura do descarte traça uma cidade onde não há lugar para os pobres, os nascituros, as pessoas frágeis, os doentes, as crianças, as mulheres, os jovens, os idosos”. A denúncia do Papa de um poder tornado “auto-referencial” é contundente: “Trata-se de uma doença horrível!”. Citado por Francisco, um dos maiores políticos italianos do século XX, Aldo Moro, constatava que “um Estado não é realmente democrático se não estiver ao serviço do homem, se não tiver como finalidade suprema a dignidade, a liberdade, a autonomia da pessoa humana, se não for respeitoso daquelas formações sociais em que a pessoa humana se realiza livremente e onde integra a própria personalidade”.
De resto, como Francisco nota, a democracia não se circunscreve ao voto do povo, cuja abstenção eleitoral, de resto, aumenta. É necessário que, para além do apelo ao voto, se criem “as condições para que todos se possam expressar e participar. E a participação não se pode improvisar: aprende-se a partir da infância, da juventude, e deve ser ‘treinada’”. O sentido crítico, pede o Papa, deve ser aprofundado para que melhor se possa enfrentar as tentações populistas.
A política deve, pois, traduzir o reflexo das necessidades dos povos no aperfeiçoamento da democracia. Os mais necessitados e os que vivem sem as condições mínimas requeridas para uma vida digna devem merecer a atenção primordial das políticas públicas.
Em inúmeras ocasiões, o Papa Francisco soube oferecer um horizonte de esperança a sociedades com dificuldade em imaginar um desejável futuro comum. A ideologia que diz não haver qualquer alternativa a cidadãos conformados no seu papel de consumidores não deve ter a última palavra. Em vez de um apagão do futuro, o Papa propõe “a fraternidade”. Ela “faz florescer as relações sociais”. Para Francisco “é preciso ter coragem para pensar em si próprio como povo, não como eu, ou como o meu clã, a minha família, os meus amigos”. É que, como tinha escrito na encíclica Fratelli Tutti, “é muito difícil projectar algo de grande a longo prazo, se não se consegue torná-lo um sonho colectivo”. Sublinhe-se: “Uma democracia com o coração curado continua a cultivar sonhos para o futuro, põe em jogo, chama à participação pessoal e comunitária. Não tenhais medo de sonhar o futuro! Não nos deixemos enganar por soluções fáceis”.
Na intervenção que teve lugar em Trieste no ano passado, o Papa pediu que nos apaixonássemos pelo bem comum. “Compete-nos a tarefa de não manipular a palavra democracia nem de a deformar com títulos vazios de conteúdo, capazes de justificar qualquer acção”. Francisco explicou que “a democracia não é uma caixa vazia, mas está ligada aos valores da pessoa, da fraternidade e até da ecologia integral”.
O respeito pela liberdade, pela justiça e a procura do bem comum são os sólidos alicerces de qualquer sociedade. Para que estas vertentes colham realização, todos os cidadãos devem participar nos actos eleitorais. A escolha de um melhor caminho colectivo depende de todos nós. Sem o contributo permanente de cada um não conseguiremos enfrentar os grandes desafios nacionais e internacionais.
Que este repto não seja esquecido é o que deseja a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga.