(CONTINUAÇÃO)
O conceito de fronteira enquanto ponto de intersecção das interacções internacionais revela-se, assim, algo paradoxal: tanto separa como pode pôr em relação duas ou mais entidades estaduais. Tem por definição um carácter não-unilateral, mas não implica necessariamente um recorte pactício ou acordado. Com efeito, algumas fronteiras perduram no tempo com configurações não reconhecidas de jure, e são factor de acentuada instabilidade e litígios permanentes, pelo que para estabilizar os limites territoriais pode haver que proceder a rectificação de fronteiras. No caso de Portugal refira-se a existência da comissão interministerial de limites e bacias hidrográficas luso-espanholas. No âmbito da ONU existe uma comissão específica sobre os limites da plataforma continental no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) de 1982, um importante instrumento jurídico que estipula as regras acerca da soberania dos Estados sobre as respectivas águas adjacentes. A questão da fronteira marítima e, concomitantemente, da riqueza dos fundos marinhos constituem variáveis de crescente importância a considerar na análise das relações internacionais, tal como aquilo que poderíamos designar genericamente, numa leitura mais alargada dos recursos, as novas “fronteiras da energia”. De assinalar que as zonas marítimas sob soberania – de especial relevância para Portugal - compreendem de acordo com o definido na CNUDM as águas interiores marítimas, o mar territorial, a zona económica exclusiva (ZEE), incluindo a zona contígua ao mar territorial e a plataforma continental. Na dilucidação das múltiplas vertentes constantes da noção de fronteira pode assumir especial relevância a geopolítica que se reporta precisamente ao estudo das dinâmicas entre o nexo geográfico ou territorial e a conduta das Estados no plano internacional, contemplando hodiernamente as várias lógicas: continental, marítima, aérea, e do espaço sideral, sem excluir a importância das periferias e de outras franjas de território.
Na análise da problemática da fronteira importa citar igualmente outros factores decorrentes do reconhecimento das interdependências complexas e das dinâmicas transnacionais existentes nas relações internacionais contemporâneas, e que só marginalmente são inteligíveis na óptica clássica do jogo das soberanias e do nexo territorial. A transnacionalização crescente da economia mundial e dos mercados financeiros, a que se somou a revolução nas telecomunicações por satélite, entre outros factores globais, transformou significativamente o meio internacional. Por sua vez, os efeitos globais da modernização, normalmente correlacionados com o crescimento das interdependências e dos processos transnacionais - no quadro do qual as cadeias globais de produção e de fornecimentos assumem relevância de primeiríssimo plano - contribuem, assim, para gerar uma descontinuidade fundamental no sistema internacional. Com efeito, o crescimento das pulsações transnacionais e a consequente maior permeabilidade das fronteiras, em resultado da forte globalização, implica elevados níveis de interconectividade – o chamado factor de penetração - entre países e sociedades, com tradução, por exemplo, nos problemas associados à rápida transmissibilidade das pandemias. No plano metodológico deparamo-nos com um importante desafio conceptual e empírico que suscita necessariamente agendas de pesquisa mais alargadas, onde se incluem os novos conceitos de governação às escalas global e regional – vulgo novos modos de governança - mas também no que respeita à própria metamorfose dos Estados contemporâneos, nomeadamente na mutação do modelo de soberania vertical e da correspondente fronteira territorial em sentido mais tradicional. Tais dinâmicas têm um prolongamento interessante nos processos de integração regional no seio dos quais se visualiza um significativo grau de interdependência entre os seus componentes, definidos pela elevada probabilidade de co-variância das suas propriedades sistémicas. A integração política propriamente dita aponta, por sua vez, para processos de relacionamento pacífico entre Estados, que normalmente compartilham uma certa contiguidade espacial ou mesmo algum sentimento de pertença. Um esquema de integração pode ser considerado uma alternativa ou metodologia deliberada de paz nas relações internacionais onde a probabilidade de recurso à guerra no seu seio é drasticamente reduzida ou mesmo anulada. Embora o estudo das dinâmicas de integração política, ou seja, do fenómeno do regionalismo nas relações internacionais não se limite ao caso europeu, foi em grande medida o laboratório político do projecto comunitário do pós-guerra que permitiu estabilizar hipóteses susceptíveis de generalização a outros contextos macrorregionais. No caso da União Europeia assume especial relevância o revolucionário Espaço Schengen, uma área composta por vinte e seis países europeus que aboliram todos os tipos de controlo de fronteira entre si, levando as políticas cooperativas de boa vizinhança a um patamar sem paralelo no passado.
Noutro plano da mesma temática, o discurso cosmopolita hodierno propugnando um desígnio de alcance mais universal – conducente igualmente a um potencial esbatimento das fronteiras - aponta para a emergência de uma comunidade imaginada definida em termos da rede societal de cidadãos à escala mundial, facilitadora de políticas integradoras. A sua novidade residiria no ângulo de visão: uma ideia de cultura mais universalizada e em maneiras de estar e de viver mais abertas e pacíficas. Um elemento nuclear do cosmopolitismo é, pois, a de que representaria muito mais do que o mero crescimento das interacções horizontais entre os Estados, encerrando um potencial de transformar positivamente os padrões comportamentais clássicos desses mesmos Estados nas relações internacionais, contendo importantes virtualidades impulsionadoras da sociedade civil transnacional - contrariando nacionalismos exacerbados, práticas proteccionistas e tentações etnocêntricas - embora consubstancie ele mesmo mais um elemento das contradições de um sistema global ubíquo em que as fronteiras ainda perduram como variáveis determinantes.
Por último, no quadro do presente delineamento, cumpriria fazer referência àquele que constitui porventura - no plano das relações internacionais - um dos principais efeitos sistémicos da globalização com relevância para a problemática das fronteiras: a desterritorialização. Este fenómeno aparenta ter impacto significativo em dois planos principais: primeiro, na conceptualização da segurança que é por definição interdependente, estando associada ao carácter elástico da fronteira de defesa, que não opera nos limites físicos do território soberano, o que explicaria, por exemplo, a importante presença de militares portugueses ao longo das últimas décadas no Kosovo, no Líbano, no aeroporto de Cabul, ou na República Centro-Africana. O nexo da segurança interdependente altera, pois, de forma significativa a percepção e a própria realidade do que se poderia designar de meaningful distance; segundo, o chamado terreno cibersimbólico a que se soma o espectro diversificado dos novos ciberconflitos - por natureza trans-nacionais - tornam as fronteiras mais porosas e doravante irrelevantes, abrindo uma nova “brecha” no próprio conceito de fronteira clássica, constituindo o ciberterrorismo uma das expressões mais graves com consequências altamente disruptivas para o futuro da estabilidade internacional.