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Em tempo de grandes incertezas – Há que estar alerta e vigilante

Quem, como eu, ainda se lembra de como era a Saúde em Portugal nas décadas de sessenta e setenta do século passado, sabe o papel desempenhado pelas vacinas na diminuição da mortalidade infantil.

Recordo-me com apreciável nitidez de algumas raparigas e rapazes meus contemporâneos, afetados pela Poliomielite, que morreram ou ficaram com sequelas para o resto da vida e também me lembro muito bem da vacinação em massa contra esta doença, ocorrida em 1965, ano em que foi implementado o Programa Nacional de Vacinação (PNV).

Programa Nacional de Vacinação que é universal, gratuito e acessível a todos os residentes no país e que é responsável pela diminuição e até erradicação de muitas doenças infeciosas. Um marco verdadeiramente importante na Saúde em Portugal!

Recordo-me desses tempos em que, praticamente em todas as semanas, ocorriam funerais de crianças e que iam a enterrar em cantões do cemitério previamente preparados para “sepultar anjinhos”.

Trago à memória os primeiros anos de exercício da minha profissão de médico em que era comum ver casos de desidratação grave por gastroenterites banais e marasmos por malnutrição. 

Um pouco mais tarde, ainda na era da pré-ventilação, lembro-me da assistência aos recém-nascidos pré-termo e dos cuidados limitados que lhes podiam ser oferecidos. Ainda desses anos, revivo o grande número de doenças infeciosas, a frequência de meningites bacterianas e as mortes e sequelas advindas dessas patologias.

Retrospetivamente revejo os grandes avanços tecnológicos, particularmente no campo da imagiologia e científicos, especialmente nas áreas da biologia molecular e da genética.

Tive e toda a minha geração teve a possibilidade de assistir a todas essas maravilhas trazidas pela ciência e tecnologia e que vieram revolucionar os cuidados na Medicina. Tive, e toda a minha geração teve a possibilidade de fazer uma verdadeira simbiose entre a prática do “João Semana” e a medicina baseada na evidência do tempo presente.

Enfim, reviso um passado de quase meio século enumerando, ainda que muito sucintamente, os avanços na Saúde em Portugal iniciados com o PNV, prosseguidos com a instalação do Serviço Nacional de Saúde e acompanhados pela substancial melhoria das condições de vida do povo português com a integração do país na Comunidade Económica Europeia.

Reviso as virtudes de um passado admirável, lembrando as angústias vindas do outro lado do Atlântico.

Na realidade, as notícias oriundas dos Estados Unidos da América que vão dando conta das nomeações para a nova administração liderada pelo presidente eleito, Donald Trump, não auguram um futuro promissor, em particular para a área da saúde, nos próximos quatro anos.

A nomeação de Robert F. Kennedy, um conhecido negacionista das vacinas, a par de outros responsáveis para a mesma área, não vaticina um amanhã de esperança e de progresso. As outras personalidades indigitadas, Dave Welton, Mehmet Oz, Martin Malkary, Janette Nesheiwat e Jay Bhattacharya, a par do negacionismo das vacinas defendem a promoção de práticas sem qualquer validade científica. Embora carecendo ainda da validação do Senado para a nomeação definitiva, representam um verdadeiro perigo para a saúde do povo americano e para o mundo.

A sua influência em instituições particularmente importantes como a Organização Mundial de Saúde, retirando-lhe financiamento, ou as previsíveis limitações de movimento impostas aos cientistas, representam um tempo de imensas dificuldades para quem trabalha em cuidados de saúde.

Ao promoverem a desinformação e ao validarem a pseudociência, são um verdadeiro perigo público. Ao afirmarem que as vacinas estão aliadas a uma maior prevalência de autismo, o que nunca foi cientificamente provado, ou ao desvalorizarem o seu papel, estão a negar a ciência e a instalar a dúvida na população.

Neste tempo de grandes incertezas, em que a vitória de Donald Trump agudizou o sentimento de desalento em muitas latitudes, há que estar alerta e vigilante e não pactuar com os negacionistas da ciência, das alterações climáticas e de outras matérias que apenas significam retrocesso e idolatria ao capital.

J. M. Gonçalves de Oliveira

J. M. Gonçalves de Oliveira

3 dezembro 2024