Emerge como um segredo mal guardado. A candidatura do ainda chefe de estado-maior da Armada, almirante Gouveia e Melo, é dada por adquirida pela generalidade dos meios de comunicação social, com o anúncio público perspetivado para daqui a escassos meses (março é o mês apontado), bem mais cedo do que o usual, se cotejado com corridas presidenciais anteriores.
Fixando-nos na história da República Portuguesa, podemos reter que a assunção da chefia do Estado (PR) por militares só se tem verificado em períodos de maior intranquilidade política.
Durante a nossa primeira República (1910-1926), todos os Presidentes foram não militares, excetuando dois casos, nos anos de 1918-19: Sidónio Pais, eleito Presidente em eleições diretas, sem concorrência, em abril de 1918; José Canto e Castro, eleito Presidente pelo Congresso da República após o assassinato de Sidónio em dezembro desse mesmo ano de 1918, que se manterá no cargo por menos de um ano.
Como é sabido, na sequência da insurreição militar iniciada aqui em Braga a 28 de maio de 1926 a 1ª República cairá para dar lugar, entretanto, ao autodesignado Estado Novo, período (1933-74) durante o qual os três presidentes da República que assumiram o cargo o fizeram na condição de militares de profissão.
A ditadura do Estado Novo teve, pois, nos militares o mais alto suporte, através do presidente da República, mas seriam também os militares que nos devolveriam a democracia em Abril de 1974. E no novo regime saído desta revolução afigurou-se como algo natural, e quase inevitável, que o primeiro presidente da República fosse um militar, no caso, o general Ramalho Eanes.
Em contextos políticos particulares, depois do envolvimento em guerras ou em tempos de alta tensão, como sucedeu durante a Guerra-Fria, em repúblicas com pergaminhos democráticos mais longos e densos do que a nossa também assistimos à conquista eleitoral da presidência por militares. Podemos lembrar o caso do general Dwight Eisenhower, presidente dos EUA entre 1953-1961, ou o do general Charles de Gaulle que, depois de assumir episodicamente a chefia do governo em França no imediato pós-2ª Guerra Mundial, virá a ganhar a presidência francesa na sequência da crise da guerra da independência da Argélia, para se manter cerca de dez anos no poder.
Recentremo-nos no nosso país. Após o termo do segundo mandato de Ramalho Eanes, os quatro presidentes que lhe sucederam no cargo (Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa) vestirão plenamente o “fato civil”, num país já sem a tutela do Conselho da Revolução (desde 1982).
Aparentemente, algumas sondagens colocam o almirante Gouveia e Melo como um sério candidato para o cargo presidencial em Belém, após 2026. Até agora, para lá de todo o mérito militar que possa patentear, Gouveia e Melo apenas tem como perfil para apresentar aos portugueses a eficácia demonstrada na liderança do processo de vacinação contra a epidemia COVID-19. Sobre o seu posicionamento político-filosófico, e partidário, alguma coisa haverá de ser libertada, todavia, presentemente prevalece o vazio no domínio público.
Perante tão curioso perfil, não deixa de ser surpreendente que a figura de Gouveia e Melo emirja como possuidora de fortes possibilidades de vitória nas futuras eleições presidenciais de 1926.
Muitos dos leitores mais seniores lembrar-se-ão de um velho passatempo conhecido como jogo da “batalha naval”, no qual o vencedor tinha de afundar todos os navios do oponente, desde o mais importante porta-aviões até aos submarinos.
Se Gouveia e Melo, por agora putativo candidato presidencial, vier a merecer o endosso eleitoral dos portugueses, tal só pode ser entendido como revelador do desapreço que os mesmos têm pelos políticos civis que nos têm servido nos últimos anos e/ou do temor pelos tempos mais turbulentos que vivemos, designadamente no contexto da segurança internacional. No mínimo, no “jogo” da política atual, a eleição de Gouveia e Melo, evocando o “jogo da batalha naval”, bem que pode ser entendida como um “submarino ao fundo” no mar da nossa democracia.