Hoje ainda vamos manter-nos ao redor do Gnosticismo. Fruto de incompreensões várias ou interesses conscientes de enganarem as pessoas a partir de migalhas da verdade, já encontrei várias vezes a associação entre, por um lado, o facto daquilo que podemos denominar de primeiro cânone elaborado por alguém que se dizia “cristão” ter sido, na verdade, realizado por um gnóstico, e, por outro lado, o se afirmar que o cânone cristão é gnóstico.
Recordemos que não se pode ser genuinamente cristão e gnóstico ao mesmo tempo. São duas visões da realidade drasticamente destoantes. Evoquemos ainda que “cânone”, no sentido que se está a dar a este termo nestes textos, se reporta a algo como “norma”, o que, associado aos textos bíblicos, passou a designar a soma daquelas obras que foram admitidas como podendo estar (no que concerne ao seu valor inspirado e uso litúrgico universal) ao nível dos textos de um Antigo Testamento progressivamente estabilizado (não sem controvérsias anti-cristãs).
As “migalhas da verdade” a que me referi aludem para a realidade de que a primeira seleção de livros que poderiam ser tidos como canónicos para os cristãos ter sido concebida por Marcião de Sinope. Ocorre, porém, que esse cânone nunca foi acolhido pela Grande Igreja (aquilo a que, depois, se chamará de “Igreja Católica”), pois, como se disse, essa pessoa se revelou ser um gnóstico – algo que se comprova, de modo claríssimo, no seu cânone.
Efetivamente, e como gnóstico que concebe o “deus” criador do Antigo Testamento como um demiurgo mau e totalmente distinto do verdadeiro Deus-Amor do Novo Testamento, Marcião não aceita, no seu cânone, nenhum texto anterior a Jesus Cristo. Mais: ao dizer que não podia haver mais do que um Evangelho verdadeiro, acaba por optar pelo “Evangelho segundo São Lucas” (por ser aquele em que a mensagem mais vinca a misericordiosa), mas omitindo as passagens que iam contra a sua sensibilidade – algo que o fez acabar por ser denominado de “Evangelho de Marcião”. Por fim, aceita apenas mais algumas cartas de São Paulo (10) – que considera o único Apóstolo –, mas também tirando passagens em que se abonava o judaísmo.
Marcião, devido às suas posições e na esperança que mudasse de opinião, acabou por ser medicinalmente excluído de poder participar na vida comunitária cristã, mas isso não ocorreu, tendo-se mantido fiel aos ensinamentos do seu mestre – um tal gnóstico de nome Cerdo o Sírio –. De notar que há registos que tais ensinamentos, entretanto espartilhados em diversas correntes contrastantes, perduraram até cerca do séc. X em zonas da Ásia Central.
De todos os modos, o surgir deste cânone, por volta do ano de 140, alertou os cristãos para a necessidade de começarem a estabelecer finalmente o seu cânone enquanto, como vimos noutro texto precedente, um dos elementos da “tradição”. Começam, desta forma, a surgir diversos intentos de definição dos textos tidos como canónicos pelas comunidades cristãs.
Estes intentos sofreram oscilações, devido à confusão entre “ortodoxia” e “apostolicidade” e, além disso, se conhecer, em alguns locais, que os autores de dados textos não terem feito parte do grupo dos primeiros apóstolos. De qualquer modo, e no séc. II, surgem alguns cânones cristãos explícitos (listas de livros) ou implícitos (uso de livros): o de Policarpo de Esmirna (c. 140), o do “Fragmento de Muratori” (c. 170) e o de Ireneu de Lião (c. 190).