As eleições americanas de novembro marcam o fim de uma era, onde os Estados Unidos da América serviam de garantia de manutenção de uma ordem mundial centrada nas normas e tratados definidos em instituições multilaterais e na defesa dos ideais de liberdade, democracia e capitalismo para todos, através da força se necessário. Os EUA cumpriam este papel não por mero altruísmo, mas por interesse próprio, sabendo muito bem que um mundo onde a sua moeda reina suprema e onde os seus aliados podem confiar em garantias de segurança seria um mundo onde os interesses americanos seriam sempre os primeiros a serem considerados. Ironicamente, foi em nome de uma política de “América Primeiro” que a população americana elegeu novamente Donald Trump para governar os seus destinos, ameaçando a estratégia que manteve a hegemonia americana desde o final da Guerra Fria. Para perceber o seu futuro é urgente compreender também os antecedentes históricos do intervencionismo americano.
Protegidos pela vastidão e pelo isolamento do seu país, bem como pelo seu idealismo e desconfiança em relação ao Velho Mundo, os norte-americanos seguiram durante muitos anos uma política externa isolacionista, moldada mais pela sua visão de como queriam que o mundo fosse do que pelas suas necessidades práticas. O isolacionismo difere do pacifismo, que rejeita qualquer forma de guerra, uma vez que os isolacionistas podem ainda defender uma defesa nacional forte, assim como procurar territórios ultramarinos e esferas de influência económica. A expansão do território dos Estados Unidos era vista mais como uma questão interna do que internacional. Na sequência da Doutrina Monroe as guerras por território na América do Norte, Central e do Sul eram vistas como um imperativo de manutenção da jovem República. A construção e manutenção do império americano nunca foi, pois, uma questão de política externa, mas de afirmação interna. A Europa e a Ásia estavam longe, mas o seu quintal estava próximo, e como tal deveria ser gerido de acordo com os seus interesses. A rutura com o secular isolacionismo americano começou com o Presidente Theodore Roosevelt e a sua teoria da intervenção baseada no interesse nacional, tendo continuado com o Presidente Woodrow Wilson e a sua teoria de uma missão messiânica de propagação e defesa da democracia a nível internacional como única forma de alcançar a paz.
Anos depois, foram os esforços do Presidente Franklin Roosevelt para “educar” o público norte-americano que garantiram que os EUA estavam prontos para pegar em armas e juntar-se aos Aliados em 1941. Roosevelt apoiou o esforço de guerra dos britânicos através de projetos de lei que proclamavam a neutralidade, acabando por torcer a Doutrina Monroe até um estado que seria irreconhecível ao seu criador. As guerras na Europa e a sua necessária reconstrução foram determinantes para a afirmação de uma hegemonia americana, baseada na defesa de um mercado livre internacional, centrado na força do dólar e na crença de que a expansão do ideal americano de liberdade, com a adoção por todo o mundo de instituições democráticas, conduziria a um mundo mais pacífico e racional. Foi a visão de Roosevelt de que quaisquer conflitos violentos entre nações deveriam ser geridos por um sistema de segurança coletiva, policiado pelos principais vencedores da II Guerra Mundial, que criou tanto o atual sistema internacional de regras como as suas instituições, abrindo caminho para uma nova ortodoxia na política externa dos EUA que se manteve até à chegada de Trump.
Tudo indica que a era do intervencionismo americano está prestes a chegar ao fim com o regresso do isolacionismo na sua forma Trumpiana, motivado por um foco interno em que, novamente, é mais importante a visão do povo americano quanto ao seu papel no mundo do que a realidade da sua situação geopolítica. Não tendo sido perfeito, o papel dos EUA no palco mundial foi essencial para afirmar um período de aumento de prosperidade e paz relativa como nunca antes visto, assim como para promover o modelo de democracia liberal por todo o mundo. Apesar de todas as suas falhas e hipocrisias, o fim da atual linha de política externa americana decreta um vazio de poder a nível internacional que terá de ser preenchido de uma forma ou de outra. No que diz respeito à Europa, a dependência dos EUA acabou. É hora de a União Europeia assumir a defesa dos seus próprios interesses, ainda que sem abandonar a Aliança Atlântica, sendo que a única alternativa será vergar-se perante as agendas antidemocráticas de outras potências. Também aqui Portugal, um país pequeno no mundo, mas médio na Europa, terá uma palavra importante a dizer, assim haja lucidez política para isso. Se seremos capazes de fazer esta viragem estratégica, apenas o tempo o dirá.