Num esforço inglório de colocarem o ónus da culpa das perseguições sofridas pelos cristãos nestes mesmos e, simultaneamente, apresentarem um Cristianismo que no séc. II era antirromano, uma série de publicações muito díspares, na proveniência e na qualidade, têm surgido desde há uma meia dúzia de décadas. Publicações essas, genuinamente penosas de serem lidas, pois, por falta de evidências para as suas teses, acabam por repetir, num ciclo-vicioso, o nada de verdadeiro que outros textos parecidos apresentaram antes.
A verdade é que, e como já está presente no Novo Testamento, os cristãos sempre procuraram ter relações cordiais com as autoridades imperiais romanas. A elas são incutidos os cristãos a obedecerem (sempre que isso não fosse contra a sua fé) e a rezarem. Pode parecer estranho, face ao espiritualmente desolador que foram as perseguições que as comunidades cristãs do século segundo padeceram à mão das antes aduzidas autoridades, mas os cristãos quase unanimemente não consideravam estas culpadas por aquilo que elas lhes estavam a fazer.
Na verdade, os nossos irmãos na fé pesavam que quem os perseguia, torturava e até martirizava também eram vítimas com o seu coração corrompido e a necessitar de ser perdoado (conforme testemunhou o Senhor Jesus). Vítimas de quem era deveras culpado por essa situação que viviam. Em concreto: as forças maléficas que, tendo sido dadas pelos pagãos aos seus falsos-deuses, agora os afligiam e moviam a não ver a maravilha que era o Cristianismo.
Sim; os cristãos não admitiam a existência de deuses verdadeiros distintos do seu Deus revelado em e por Jesus. Sim; os cristãos não se imiscuíam em práticas sacrificiais aos deuses e ao Imperador. Sim; os cristãos, na linha de diversas passagens do Antigo Testamento e do crescentemente formado Novo Testamento, consideravam aquelas divindades pagãs não só como carecendo de substrato histórico, mas sendo ainda resultantes da imaginação humana. Tudo isto é verdadeiro, mas era resultado de um amor verdadeiro pelas pessoas que estavam enganadas e, de modo análogo, pelo próprio Império.
Um maravilhoso texto anónimo do séc. II – “A Carta a Diogneto” – chega mesmo a apresentar o Cristianismo como a “alma” de um “corpo” que era o Império. Este sem aquele era um cadáver (do mesmo modo que um “corpo” sem “alma”… se isto for possível), nomeadamente a nível moral. O Cristianismo, diz ainda esse mesmo texto, é o esteio vital de que o Império carecia para se humanizar a nível das leis e dos costumes e, assim, deixar de ser uma força opressiva para tantos e tantas, também devido ao perfil da sua tributação e da sua prática da depreciação monetária para pagar as suas aventuras externas e o seu débil estado interno.
Por outro lado, cada vez mais cristãos eram cidadãos romanos e, desse modo, tinham uma estima verdadeira pelo que de aceitável havia no modo de ser, pensar e agir romano (inclusive o Imperial, apesar de, com algumas exceções, a maioria dos imperadores romanos fossem homicidas, déspotas, ladrões e até loucos). Nunca os cristãos deixaram de ser romanos em Roma; antioquenos em Antioquia; atenienses em Atenas e alexandrinos em Alexandria por um qualquer ódio que nutrissem ao Império. Não. Eles eram cidadãos exemplares em tudo, exceto, mais uma vez, no que estava em contraposição à sua crença num Deus-Amor.