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OS DIAS DA SEMANA O jornalismo e os próximos anos de Trump

 


 

 


 


 

É deveras esclarecedor que, ao escrever um livro sobre As 100 Palavras do Jornalismo, François Dufour, chefe de redacção do Petit Quotidien e de Mon Quotidien, tenha considerado que uma delas deveria ser Estados Unidos da América. A inclusão visa responder a uma dúvida: “Porque é que os media cobrem tão intensamente o que se passa nos Estados Unidos da América?”

Afirmando que a resposta é “evidente”, François Dufour apresenta um conjunto de razões que justificam a excessiva atenção: “O exército, as empresas, a NASA, as inovações, as invenções, a cultura, os desportos, os campeões, as estrelas, o dólar-rei (a divisa número um do comércio internacional), Nova Iorque, capital do mundo…” Acrescenta o jornalista que, por todas estas razões – “e, para outros, pelo anti-americanismo ou anti-capitalismo” –, os media acompanham atentamente a actualidade americana. François Dufour está a referir-se ao que sucede com o jornalismo francês, não deixando de assinalar que os Estados Unidos da América ocupam ainda mais espaço nos diários italianos.

François Dufour enunciou mais algumas razões para justificar a tão intensa cobertura: o inglês, mesmo o americano, é mais fácil de compreender (na oral e na escrita) do que o chinês, o hindi, o japonês ou o russo; o jornalismo americano, particularmente o de investigação, popularizado por Hollywood, permanece mítico para muitos.

Outros motivos ponderosos poderiam ser aduzidos. A vida diária de cada um, em inúmeros pontos do mundo, é hoje, para o bem e para o mal, decisivamente condicionada por grandes empresas tecnológicas dos Estados Unidos da América, comummente designadas pelo acrónimo GAFAM – Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. E a rede social X, ex-Twitter (pertencente a um apoiante de Donald Trump), usada como poderosa máquina de desinformação, tem perniciosos efeitos globais, como tem sido amplamente testemunhado.

O que se passa do outro lado do Atlântico é ainda relevante pelo efeito que a permanente ridicularização do conceito de verdade dos factos tem na destruição de uma opinião pública democrática.

Não foi por acaso que, assim que se soube que o próximo Presidente dos Estados Unidos da América será Donald Trump, se multiplicaram as inquietações quanto à possibilidade de sobrevivência de um jornalismo livre e independente no país e fora dele.

Katharine Viner, chefe de redacção do diário britânico The Guardian, formulava a dúvida sobre como poderá o jornalismo resistir a mais quatro anos de Trump. Como se manifestará o revanchismo dele é uma dúvida e um temor. Na NBC News, a jornalista Kristen Welker questionava se os meios de comunicação social terão a capacidade e os recursos necessários para se defenderem das ameaças legais, digitais e físicas, cujo agravamento é previsível.

A chegada de Trump ao poder em 2016 foi acompanhada por um enorme aumento do número de leitores, e assinantes, da imprensa independente e de telespectadores dos canais televisivos com uma prática jornalística rigorosa. Agora, há o receio de, em vez de isso se repetir, os leitores e os telespectadores, exaustos, se renderem à apatia.

No texto de quarta-feira, a chefe de redacção do Guardian veio lembrar as “implicações dramáticas” da eleição de Trump para as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente e para, “talvez acima de tudo, o nosso futuro ambiental colectivo”. Katharine Viner recordou que, na semana anterior, uma colunista do seu jornal, Margaret Sullivan, tinha também descrito com clareza a ameaça à imprensa livre que constitui a presidência de Trump. É que ele tem incitado ao ódio contra os jornalistas, chamando-lhes “inimigos do povo”, classificando o jornalismo legítimo como “notícias falsas” e ironizando sobre a possibilidade de os profissionais dos media serem baleados.

Os tempos exigirão um jornalismo que não possa ser pressionado por um dono multimilionário “aterrorizado pela retaliação de um arruaceiro na Casa Branca”, escreveu a chefe de redacção do Guardian, aludindo à atitude do patrão do Washington Post, que impediu que o jornal tomasse posição contra Donald Trump. Katharine Viner garante: “Enfrentaremos as ameaças, mas isso exigirá um jornalismo independente, corajoso e bem financiado”. Esse jornalismo merece e tem de ser defendido em todos os lugares. Desinformação a mais e informação a menos – e, portanto, ignorância, cinismo e fanatismo generalizados – é desastroso.

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

10 novembro 2024