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A ética da solidariedade no combate à pobreza

Muitos aludem à Doutrina Social da Igreja, poucos a conhecem realmente. Em sentido estrito, podemos traduzi-la como o pensamento e ensinamentos da Igreja acerca da realidade e dimensão social da vida humana, em consonância com o Evangelho. Na sua famosa encíclica, o Papa Paulo VI refere-se-lhe como o compromisso conferido às comunidades católicas “de projetar sobre as questões sociais do seu tempo a luz do Evangelho” [1].

Ora, no momento em que as análises da Pordata revelam que “os pobres em Portugal estão mais pobres”, e que, segundo o Banco Mundial, “acabar com a pobreza pode demorar mais de um século se o ritmo atual se mantiver”, é cada vez mais premente que os cristãos busquem na Doutrina Social da Igreja orientação clara e solicitude especial para perspetivar a melhoria das condições de vida e bem-estar do ser humano em comunidade. E, nesse sentido, encarar decisivamente a complexa questão da pobreza.

A situação atual da sociedade portuguesa, em contexto europeu, patenteia uma consciência de crise e de mutação sociocultural. Quando a pobreza aumenta e se torna cada vez mais absoluta no seu limiar, quando a existência de tantos pobres questiona os fundamentos e capacidade de serviço do Estado social, quando os migrantes se convertem em elemento de desunião no seio da Comunidade Europeia, condicionando as relações Norte/Sul, ou diferenciando o Leste do Oeste, não podemos conformarmo-nos. Precisamos da solidariedade como tarefa comunitária.

Solidariedade como imperativo político e até ontológico, num sentido de participação em cultura de solidariedade. Solidariedade enérgica e resoluta, na senda do proclamado pelo Papa Francisco: “Não há verdadeira solidariedade sem participação social e sentido de pertença”. Porque se o que nos humaniza é a solidariedade de responsabilidade, é urgente e pertinente adotar a ética da solidariedade na frente estratégica de luta contra a pobreza e pela defesa da dignidade humana.

A sociedade dos nossos dias é cada vez mais de “cultura individualista”, como denuncia o Papa Francisco. Tem tanto de hedonista como de interesses egoístas, evidenciando a impotência de políticas pouco articuladas e integradoras, insuficientemente abertas ao acolhimento digno, incapazes de combater o flagelo da pobreza e da fome ou de evitar os trágicos naufrágios de emigrantes no espaço europeu. Tal situação crítica, no social e nos valores, não permite que os autênticos cristãos fiquem indiferentes na defesa dos direitos humanos fundamentais, na prática da solidariedade e na promoção do diálogo entre pessoas e grupos sociais.

Por outro lado, enquanto se assiste na Comunidade Europeia a tantos discursos e estudos para a integração dos mais desfavorecidos, desde os migrantes aos marginalizados, a verdade é que não se passa à ação concreta nem à interdependência solidária, muito menos se tem em conta as dimensões éticas quando em confronto com fatores meramente económicos ou de oportunidade política.

Nada do que é humano nos pode ser estranho, lembrava há mais de dois milénios um poeta romano. Foi seguramente no espírito do humanismo social, como imperativo ético, que o Papa João Paulo II nos interpelou a uma atitude mais consciente e ativa de reevangelização, “em prol do bem do próximo”; porque “a prática da solidariedade no interior de cada sociedade é válida quando os seus membros se reconhecem uns aos outros como pessoas” [2]. 

Quando se aproxima a celebração do Dia Mundial do Pobre, a 17 de Novembro, devemos assumir a solidariedade como “o novo nome da Paz”, chamando todos, todos, todos à “globalização da solidariedade”. Sensibilizarmos para a importância de viver a nossa vida cristã, servindo o Evangelho – origem da Doutrina Social da Igreja – e as pessoas, principalmente os mais pobres e vulneráveis, que estão no centro do Evangelho, como nos fala Lucas (4,18-21), ou mesmo Mateus (25, 40-45).

 

[1] Populorum Progressio, 2

[2] Sollicitudo rei socialis, 38 e 39

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Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga

9 novembro 2024