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“Pai dos órfãos e defensor das viúvas”

 


 

A Primeira Leitura (1 Rs 17, 10-16) e o Evangelho (Mc 12, 38-44) do próximo domingo (XXXII do Tempo Comum/Ano B) têm uma figura em comum: a viúva. Apesar de não se referir o nome, exalta-se a generosidade de uma e de outra: do mísero punhado de farinha que possuía, a viúva de Sarepta ofereceu um pãozinho a Elias, é por Deus abençoada (1 Rs 17, 16: “Nem a farinha acabou na panela, nem o azeite faltou na almotolia”) e recompensada (em 1 Rs 17, 17-24, Elias restitui a vida ao filho da viúva); da sua pobreza, a viúva do evangelho é por Jesus louvada e valorizada (Mc 12, 43-44: “esta viúva pobre deitou no tesouro mais do que todos os outros, porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento”).

Mencionadas frequentemente na Escritura, a par dos órfãos, as viúvas têm como obrigação vestir de luto1 e como direitos regressar à casa paterna2 (Gn 38, 11; Rt 1, 8) ou voltar a casar, o que não era frequente, a não ser que fosse em regime de levirato3

Perdida a esperança da fecundidade e sem defesa, as viúvas constituíam um caso típico de desgraça: viviam com grandes dificuldades económicas e privadas de proteção legal (Lc 18, 2-5). Pessoas vulneráveis, exigiam cuidados e proteção (Dt 14, 29; 24, 17-22; Jr 22, 3). É por isso que a lei as defende: “Não maltrateis nenhuma viúva nem nenhum órfão” (Ex 22, 21), Deus escuta os gemidos das viúvas (Sir 35, 14-15: “Não desprezará a oração do órfão nem os gemidos da viúva”) e apresenta-se como seu defensor e protetor (Dt 10, 18; Sl 94, 6-10; Pr 15, 25; Is 10, 2). O Sl 68, 6 chama mesmo a Deus “pai dos órfãos e defensor das viúvas”.

Na mesma ordem de ideias, os profetas apelam à defesa dos órfãos e das viúvas (Is 1, 17: “aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas”) e afirmam que Deus defende a sua causa (Ml 3, 5: “Apresentar-me-ei diante de vós para julgar e ser uma testemunha atenta [...] contra os que oprimem o operário, a viúva e o órfão”). 

Para além do que fez pela viúva de Naim (Lc 7, 11-15), Jesus criticou os líderes religiosos que, abusando do poder, exploravam as viúvas: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque devorais as casas das viúvas, e para disfarçar fazeis longas orações, por isso sofrereis juízo muito mais severo” (Mt 23, 14; Mc 12, 40).

Na sequência do que já acontecia no Antigo Testamento (Jdt 8, 4-8; 16, 22), também no Novo a viuvez é valorizada (Lc 2, 36-37; 1 Cor 7, 8) e cuidada (At 6, 1). Tg 1, 27 até afirma que “a religião pura e sem mácula para com Deus, o Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações”. Também 1 Tm 5, 3-4 apela ao respeito para com as viúvas (“Honra as viúvas, as que são verdadeiramente viúvas”) e sugere que sejam ajudadas, apenas com uma reserva: “Se alguma viúva tiver filhos ou netos, aprendam estes, antes de mais, a cumprir os seus deveres de piedade para com a própria família e a retribuir aos pais o que deles receberam, pois isso é agradável diante de Deus”. E acrescenta: “A que é verdadeiramente viúva e ficou só põe a sua esperança em Deus e persevera em súplicas e orações, noite e dia. Mas aquela que se entrega aos prazeres, embora vivendo, já está morta. (...) Só pode ser inscrita como viúva a que tiver pelo menos sessenta anos, tiver sido esposa de um só marido, gozar do testemunho de boas obras, tiver educado os filhos, praticado a hospitalidade, lavado os pés dos santos, assistido os atribulados e for dedicada a toda a obra boa. Não admitas as viúvas mais jovens, porque, quando são arrastadas por uma paixão que as afasta de Cristo, querem voltar a casar-se, incorrendo na condenação de terem rompido o primeiro compromisso. Além disso, estando na ociosidade, habituam-se a andar de casa em casa e a ser não só ociosas, mas também loquazes e indiscretas, falando do que não convém. Quero, pois, que as viúvas mais jovens se casem, tenham filhos, governem a sua casa, para não darem ao adversário nenhuma ocasião de maledicência” (1 Tm 5, 6-14).

Para concluir, a Sagrada Escritura dedica às viúvas especial atenção, cuidado e respeito. Discriminadas socialmente, são por Deus defendidas e protegidas. Vítimas ainda de alguma estigmatização social, é responsabilidade de cada um, em particular, e da comunidade, em geral, proceder com respeito, compaixão e justiça, no sentido de respeitar a sua dignidade, de defender os seus direitos e de prover ao que é necessário para o seu sustento. 


 

1 A Bíblia fala das “vestes/roupas de viúva” (Gn 38, 14; Jdt 10, 3), mas não as descreve. Contudo, indicavam seguramente o seu estado de luto e de vulnerabilidade económica e social. Seriam vestes sóbrias, de cores escuras, acompanhadas da ausência de adornos. Além disso, o véu ou manto que lhes cobria o rosto sugeriam não só o luto, como também uma certa proteção contra o olhar público.

2 Se não tivessem filhos, era mais fácil isso acontecer.

3 O levirato (do latim levir, “cunhado”) consiste numa prática social e matrimonial em que o irmão de um homem falecido se casa com a viúva. O objetivo era dar continuidade ao nome e ao património do falecido. Por isso, o primeiro filho nascido dessa união era considerado herdeiro legítimo, garantindo a continuidade da linhagem familiar e protegendo a viúva e os filhos da vulnerabilidade económica e social (cfr. Gn 38, 8). 

Pe. João Alberto Sousa Correia

Pe. João Alberto Sousa Correia

4 novembro 2024