Como já tive o ensejo de referir, noutro texto desta rubrica, as perseguições aos cristãos nos primeiros séculos, e salvo poucas exceções notáveis, foram dispersas no tempo e no espaço. Dito isto, não se pode minorar o impacto dessa realidade na vida interna e até na reflexão teológica das distintas comunidades, já que o martírio dos cristãos era uma tragédia humana para qualquer destas comunidades, mesmo que apenas um só membro delas fosse morto.
Nos dias de hoje, e para se refutar o referido impacto das perseguições, há quem sustente que os cristãos eram provocadores que buscavam ostensivamente o martírio e que, se as autoridades romanas acabavam por executá-los, era porque, conhecendo bem as dinâmicas da vida cristã, não tinham alternativa para estabelecerem e manterem a ordem.
O referido antes é um outro mito que deve ser refutado. Já no século segundo, e na “Grande Igreja” (que depois se dirá “Igreja Católica”) e mesmo que se venerassem os que deixavam que lhes tirassem a vida para atestarem a Vida, não se reconhecia como mártir senão aqueles que eram, e cito um texto desse período, «mártires segundo o Evangelho».
A expressão aqui supracitada pretende aduzir que não se admitiam como mártires senão aqueles que não buscavam ser capturados e não hostilizavam as autoridades para serem mortos (ao contrário dos seguidores de Montano da Frígia), mas antes, vivendo os ensinamentos de Cristo no amor a todos, acolhiam essa realidade se as circunstâncias os conduzissem à mesma.
O facto é que as autoridades romanas ainda conheciam pouco do Cristianismo no século II, não obstante alguns esforços dos denominados “Padres Apologistas” (com “apologia” a significar “defesa”) de com elas comunicarem e apresentarem. Na verdade, e entre outras evidências do que acabo de referir, estimavam os cristãos como “ateus” porquanto não aceitavam seguir a religião imperial que, nesse período e por exemplo, já exigia a realização de sacrifícios ao Imperador. Mais ainda: confundiam-nos com uma de muitas agregações “mutualistas” que, entre outras coisas, garantiam funerais dignos aos seus sócios.
De dizer ainda que, segundo Minúcio Félix (apologista cristão que escreveu a obra “Octávio” em finais do séc. II), a população menos culta, e receosa do que poderia significar o secretismo preventivo que envolvia as reuniões cristãs (em especial as celebrações Eucarísticas), acusava os cristãos de realidades estranhíssimas que criavam atritos face aos mesmos.
A saber e entre outros: incesto (pois os cristãos chamavam-se de “irmãos” [em Cristo] e contraiam matrimónios entre si); canibalismo (dado que falavam em “comer” a carne de Jesus); infanticídio (pois, espreitando por onde podiam para verem o que os cristãos realizavam nas Eucaristias, viam um pão [que lhes parecia uma criança] a ser “esquartejado”).
Apesar de alguns preceitos Eucarísticos (acrescidos do medo de sendo reconhecidos como cristãos poderem ser capturados e martirizados), o Cristianismo nunca foi uma religião esotérica (fechada sobre si), pois era vivida abertamente numa lógica exotérica (aberta a todos) de evangelização. Todavia, e não obstante tudo isto, o saber geral sobre a nossa fé que proclama um “Deus-Amor morto” ainda não penetrara na sociedade no séc. II da era Cristã.