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Não somos cromos

Os portugueses são tidos como um povo sereno. Por vezes tão sereno que acaba por parecer que aceita tudo de ânimo leve. É o caso dos cromos. Não se sabe muito bem como entraram nas nossas vidas, mas a verdade é que eles aí estão. Todos conhecem, muitos têm, alguns questionam-se sobre a sua existência. Em particular, sobre a forma como estes entram nas nossas vidas. Os cromos e respectivas cadernetas.

O caso

Num destes dias, quando fui levar a minha filha à escola, dou com um indivíduo à porta a oferecer cadernetas de cromos às crianças. Não é algo novo, em anos anteriores já aconteceu. E, tal como nas outras vezes, abordei-o para mostrar o meu desconforto com a sua presença e com a distribuição furtiva. Mas desta vez resolvi não ser sereno. Não, não fiz nada ao indivíduo. Fui cordial com ele pois, no fundo, ele apenas está a fazer o seu trabalho. A minha quebra de serenidade foi com a empresa que comercializa as ditas cadernetas.

Quando regressei a casa, fui à internet, onde se diz que tudo está. E lá estava, no portal da queixa, bastou pesquisar pelo nome da empresa e logo várias queixas apareceram no ecrã. Pelas respostas que li, seria uma clara perda de tempo tentar abordar a empresa ou adicionar a minha ao rol de queixas ainda por responder no referido portal. Segui um outro caminho.

A posição da escola

O primeiro passo que dei foi confirmar com a escola que, contrariamente ao que o indivíduo me disse, esta não tinha nenhum “entendimento com a editora”. No entanto, estando o indivíduo a dar as cadernetas fora da porta da escola, nada podiam fazer para o impedir.

A posição das autoridades

Depois liguei para a PSP. Disseram que não podiam fazer nada uma vez que não havia ali nenhuma “contraordenação” passível de intervenção policial. Não fiquei contente e liguei para a GNR. Aqui ouvi algo mais interessante: esse assunto é melhor ser tratado pela PSP que tem o programa Escola Segura, “mas faça a exposição por email para isso ficar registado”. Feito. A resposta ao email é que voltou a não me deixar contente: a área dessa escola é da “responsabilidade da GNR pelo que deve contactar localmente a Força de Segurança territorialmente competente, pese embora o seu email já tenha sido por nós reencaminhado”. Nesse momento, sentei-me a escrever este texto enquanto recuperava das tonturas que esta pescadinha de rabo na boca me provocou.

Duas semanas depois, chegou o email da PSP a dizer que tinham sido “desencadeadas diligências pelos polícias afetos à equipa de proximidade da Escola Segura, junto da escola referenciada”. Falaram com a coordenação da escola e com uma auxiliar e ambos confirmaram a história. No entanto, tal como me haviam dito inicialmente por telefone, “não foi verificada qualquer atividade ilícita ou preparatória que possa colocar em risco a segurança dos alunos daquela escola ou o seu normal funcionamento, com enquadramento criminal ou contraordenacional”. Ainda assim, “continuará a equipa de proximidade da Escola Segura, atenta a qualquer tipo de movimentação suspeita, nas imediações daquela escola, que possa implicar a segurança dos alunos ou o normal funcionamento da Escola”.

A posição dos pais

Não sei, pois não falei com nenhum directamente sobre este assunto. Todos corremos a deixar os nossos filhos, a voar para os nossos empregos, sem ver que há várias coisas muito problemáticas nesta situação aparentemente normal.

A principal é a mensagem que passamos às crianças. Os mesmos pais que dizem que não devem aceitar coisas de estranhos, permitem que um estranho impinja algo às suas crianças – até por cima da vedação da escola. O adulto não sabe, mas, de forma implícita, está a validar a opção de aceitar coisas de estranhos. E isso, na visão da criança, faz jurisprudência para o futuro, o que o devia sobressaltar.

Um outro problema, está relacionado com a perturbação do funcionamento da escola no dia da entrega das cadernetas. A escola pede que as crianças não levem brinquedos ou outras distracções por razões várias que aqui não vou detalhar. Os pais tendem a atender a esse pedido pois concordam com as vantagens de o fazer. No entanto, quando o brinquedo vem ter com as crianças à porta da escola, num ambiente de aparente normalidade, não há pai que resista ou que queira comprar (mais) uma batalha matinal. As crianças acabam por entrar na escola apetrechadas de um objecto a esta estranha. Nestes dias, não gostaria de ser professor. De realçar ainda que isto acontece à primeira hora do dia, precisamente na altura em que as crianças estariam mais receptivas ao ensino.

A solução

Não sei. Só sei que não somos cromos, apesar de não ter nada contra eles. Comercializem-nos, ofereçam-nos, façam o que quiserem, mas, longe das escolas dos nossos filhos que não têm como se defender deste marketing agressivo. Legisle-se, aplique-se a legislação existente (Decreto-Lei n.º 330/90, Artigo 14º), fiscalize-se, mas, por favor, aja-se, caso contrário seremos mais um, nesta infinita caderneta.

Mário Coelho

Mário Coelho

13 outubro 2024