O medo persegue-nos e domina-nos; e mesmo que nos prometam uma sociedade de abundância, solidariedade e paz, o certo é que os fantasmas da imprevisibilidade, do escuro e da intolerância não nos largam tal qual o papão ou o homem do saco da nossa infância para que papássemos a sopa toda ou deixássemos de fazer birra.
E se nos gabamos de termos perdido todo o medo do mundo devido as imprevistos e batalhas que já fomos ganhando, facilmente concluímos que isso são já águas passadas; e o que nos leva a duvidar de que quanto mais inteligente, civilizado e moderno o ser humano se intitula, mais complicada se torna a nossa vida de todos os dias, devido às invenções que ele faz dos mais terríveis meios de exercer domínio e controlo.
São os males da civilização, os custos do progresso e as exigências de quem exerce o poder sobre os subordinados e os mandados, se vai dizendo; e à custa deles diariamente morrem milhares de crianças vítimas da doença, da fome e do desamparo, estropiam-se e desalojam-se milhares de homens e mulheres em guerras e cataclismos, exerce-se a cretinice mental através da propaganda desbragada, mentirosa e malsã que nos tenta impingir, desde os pós de talco e loções de embelezamento para o rosto, como remédio para a conceção de corpos produzidos e sofisticados de jovens e mulheres de meia-idade.
E a estes desconcertos se vai chamando avanços civilizacionais em vez de torpedos e autênticos arrebites dos homens das cavernas; e que, efetivamente, não passam de um trogloditismo da era da robótica e da guerra das estrelas.
Pois é, quanto mais concito e penso me parece que o homem cada vez mais regressa as origens, ao uso dos galhos e dos guinchos; tal e qual num viver e refúgio cavernícolas, mesmo por detrás da aparência bizarra de quem maneja o computador e as redes sociais, aponta o telescópio à imensidão sideral e avança em naves espaciais em demanda de outros céus, outras galáxias.
Será que temos de pagar assim tão cara a civilização que nos é imposta pela condição de seres inteligentes? Ou tão simplesmente cada vez mais o homem é o lobo do homem, como já dizia Hobbes (Thomas, filósofo inglês, nascido em 5/4/1588)?
Mas voltemos ao medo que é o estigma das sociedades modernas e estilizadas e que mata mais do que qualquer spray para moscas ou baratas; e, assim, vivemos, dia-a-dia, acicatados pelo terror da sida, do cancro, da bomba atómica do racismo, do desemprego, do rapto dos filhos, da violência doméstica, dos maus tratas aos idosos ou do seu abandono, da derrota do Benfica, do cheque careca, da carne ou peixe estragados, do enfarte, da trombose, da inflação, de não sermos os primeiros, de não chegarmos a tempo, de sermos levados pelo conto do vigário, etc. etc. etc. E mesmo se alguém afirmar, preto no branco, que não tem medo, que não vive aterrorizado, que o nosso mundo é o melhor dos mundos está a mentir com quantos dentes tem na boca ou cabelos na cabeça, obviamente se não for desdentado ou careca; mas, infelizmente, não passa de um ser vegetativo para quem a vida se resume a estômago e intestinos, ou anda cá na terra por ver andar os outros.
E, então, este mundo que podia ser o melhor dos mundos, o paraíso encantado, o éden das delícias, está transformado numa imensa teia de aranha, onde somos presas fáceis, repito, de medos, angústias, incertezas, solidões; e isto, pura e simplesmente, só porque o homem troca o sentido e o valor das coisas e cria estranhas e complicadas formas de estar com os outros homens e de viver a vida, como sejam: o individualismo, o oportunismo, o utilitarismo, o egoísmo, a corrupção, o cabotinismo, o compadrio, o lucro fácil, a lassidão, a devassa, as fugas aos deveres cívicos e morais, enfim, à enorme falta de ética.
E tudo porque um dia, triste criatura, sonhou que podia voar nem que fosse com as tais asas de cera de Ícaro a caminho do sol e desta forma se aproximar da perfeição, do dom da eternidade, de ser deus; e ainda acrescento que espero não ver a coisa a agravar-se e, assim, nos transformarmos todos em leopardos, linces, crocodilos, jaguares... conduzidos pela trela dos poderosos e déspotas.
Então, até de hoje a oito.