Não foi por causa das imprecações do Papa Francisco contra o desperdício alimentar que Miguel Esteves Cardoso decidiu falar na segunda-feira no Público da descoberta do “prazer viciante de roubar víveres ao lixo” (“Os socorristas do lixo”) [1]. O que o incentivou a não deitar fora comida que ainda pode ser aproveitada foi o exemplo do pai que se deliciava “a fazer cirurgias melindrosas para libertar um centímetro cúbico de pêra imaculada”.
Dias antes, o Papa manifestara a sua estupefacção por ser possível haver fome no mundo actual “quando há tanto, tanto desperdício nas sociedades desenvolvidas” [2]. A preocupação do Pontífice com o tema é recorrente. No ano passado, numa Mensagem para o Dia Internacional da Consciencialização sobre Perdas e Desperdício Alimentar, que se celebra anualmente no dia 29 de Setembro, Francisco explicou que a comida que deitamos ao lixo é tirada, injustamente, das mãos de quem não a tem – “o desperdício de alimentos é uma ofensa para os pobres” [3]. “A praga das perdas e desperdícios alimentares é tão preocupante quanto à tragédia da fome”, duas tragédias que o Papa considerou “unidas por uma única raiz subjacente: ‘A cultura dominante que levou à distorção do valor dos alimentos, reduzindo-os a uma mera mercadoria de intercâmbio’”.
Um relatório recente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla inglesa de Food and Agriculture Organization) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre as perspectivas agrícolas a 10 anos corrobora a interligação entre excesso (e desperdício) e escassez. Citado pelo Público [4], o documento indica que “um total de 153 milhões de pessoas – 15 vezes a população de Portugal inteiro – deixaria de estar em situação de subnutrição se, globalmente, as perdas alimentares na cadeia de produção e o desperdício no comércio e consumo fossem reduzidos para metade até 2030”.
Os dois organismos estimam “que uma redução global no desperdício alimentar (um dos objectivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas), com consequente diminuição dos preços e uma maior ingestão calórica com efeitos transversais, mas com maior impacto nos países de menor rendimento, levaria a uma diminuição de 26% no número de população mundial considerada como subnutrida, os já referidos 153 milhões de pessoas”.
O texto de Miguel Esteves Cardoso terminava com uma referência algo abonatória dos portugueses, por estarem a desaproveitar menos os alimentos. Os números oficiais disponíveis não confirmam a impressão do colunista do Público.
Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística [5] indicam que, em Portugal, em 2022 se registou um maior desperdício de alimentos do que em 2021, ano em que o esbanjamento já tinha sido superior ao do ano anterior. Em 2022, perderam-se quase dois milhões de toneladas de alimentos. As famílias são quem mais desperdiça (1,284 milhões de toneladas). Seguem-se a restauração, hotelaria e similares (239 mil toneladas), o comércio e distribuição alimentar (227 mil toneladas), a produção primária (110 mil toneladas) e a indústria alimentar (64 mil toneladas). Se o desperdício alimentar ocorre, portanto, em vários momentos, desde a exploração agrícola até à mesa das refeições, é no contexto familiar que mais alimentos se desaproveitam. “A ofensa para os pobres” agrava também o problema ambiental, dado que a produção de alimentos desperdiçados fez com que houvesse uma inútil emissão de gases com efeito de estufa.
“Deitar comida ao lixo significa não dar valor ao sacrifício, trabalho, meios de transporte e custos de energia, usados para levar alimentos de qualidade à mesa”, explicou o Papa Francisco.
A efeméride que hoje se assinala quer contribuir para a “consciencialização sobre perdas e desperdício alimentar”. É um objectivo estimável, a “consciencialização”, mas se for capaz de impor uma rápida passagem à acção.
Nota: uma versão mais longa deste texto foi publicada no 7 Margens.