É crónico e está no sangue de uma maioria de portugueses uma visão assimétrica e anacrónica do exercício do poder. Ao longo da história e sobretudo em períodos de maior debilidade económica é para essa visão deturpadora do essencial em Democracia que muitos assentam a sua visão de quem deve exercer a governação da coisa pública. Ainda hoje é possível ouvir muitos cidadãos clamarem – numa espécie de saudosismo bacoco – por alguém que ponha ordem na casa, o mesmo quer dizer, pôr em ordem o país e a governação, chamando à liça o nome do ditador Salazar. A possibilidade de voltarmos a escolher um militar para o mais alto cargo da Nação advém deste fascínio pela autoridade e pela farda que não é mais do que o reflexo de uma cidadania débil e falta de espírito crítico. Falam do que não sabem, ou melhor, falam de uma herança recebida que não é mais do que uma ideia de que naquele tempo é que era: ordem e autoridade ligadas à imagem de que não havia corrupção, nem ladrões nem homicidas e sobrava respeito pela autoridade exercida pelo professor, pelo juiz, pelo sacerdote e pelo médico. Era o mais próximo das suas vidas. Durante a crise que assolou em Portugal com a intervenção da troika, fartei-me de ouvir os mais velhos a exprimirem o seu desejo por alguém como o anterior ditador e até mais novos, aclamando os seus méritos por ter salvado o país da bancarrota. Muitos olharam para o então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, como esse homem e voltaram a dar-lhe o voto. Há momentos ao longo da história que este fascínio pelo homem austero se tornou numa faca de dois gumes. E se para o caso em apreço um militar – Gomes da Costa – e um civil, então nomeado ministro das Finanças (1926), desenvolveram até 1933, uma espécie de redenção económica, tudo mudou a partir daí, menos esta ideia do endeusamento do poder que não foi destronada, como seria desejável, pelo 25 de Abril. Seja um militar ou um civil, sempre que há crise económica ou social, a tendência para a emergência autoritária de um salvador da pátria vem ao de cima. Esta singularidade portuguesa manifestou-se nas urnas com a escolha do general Eanes para a presidência da República e mais tarde com Cavaco Silva, sobretudo no segundo mandato. O homem austero que impunha respeito, governava alegadamente com mãos de ferro, impondo o medo e o receio, mesmo entre os jornalistas, como armas do jogo político, nunca escondeu a sua admiração pelo antigo ditador. Eis que em plena crise pandémica face a dificuldades várias no exercício da liderança, surge a oportunidade de um militar assumir as rédeas de todo processo que conduziu o país a uma espécie de estado de sítio. Gouveia e Melo exerceu as suas funções como militar, nunca despiu a farda durante esse período, exercendo a autoridade sem autoritarismo, mas na cabeça de muitos portugueses, o general é a pessoa que o país precisa na presidência da República. Não se trata agora nem de emergência, nem de crise económica, mas, alegadamente de uma crise de valores associada a uma ideia de injustiça que só pode ser resolvida por alguém com as suas características. É sobre esta ideia e não sobre a pessoa em questão que vale apena refletir. 50 anos depois, muitos portugueses, mesmo não pondo causa a Democracia, vem como solução para os seus problemas a necessidade de recaírem a sua escolha sobre a mesma ideia herdada de forma distorcida. A possibilidade de termos, no combate político, um militar, não é, em si, problemática, perigosa é a ideia que muito português tem sobre o significado dessa escolha e isso é perigoso para a Democracia e para as amplas liberdades de que gozam. Pessoalmente, reconheço-lhe as habilidades e tudo o que fez durante esse período difícil das nossas vidas, mas não me parece que se possa desenhar uma candidatura baseada numa ideia errónea e fascinante. Trata-se, sem dúvida, de uma hipérbole da admiração coletiva sobre o exercício da autoridade, espelho da debilidade política herdada por sucessivas gerações que a Democracia não conseguiu corrigir.