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Sobre a legitimidade das metas

Há cerca de dois mil anos, o filósofo Séneca escrevia que as pessoas temem tudo, como mortais que são, mas desejam tudo como se fossem imortais (in Sobre a Brevidade da Vida). 

A imoderação de propósitos pode acarretar ansiedade acrescida, decorrente do não fácil atingimento dos fins visados. Todavia, podemos bem conceder que é da insatisfação, da luta por um futuro melhor, nos planos individual como no coletivo, que advém o progresso.

Atrás, Séneca falava sobretudo para o plano individual. Agora, porém, finquemo-nos no plano coletivo, mais, no plano civilizacional. 

Desde há mais de dois anos que a Europa vive com uma guerra intestina (na Ucrânia) e desde há nove meses com uma outra paredes-meias (Israel e Hamas, em Gaza). As guerras sustentam-se comummente por ambições territoriais, mas também pela defesa de valores. 

Entendendo, e bem, que a agressão russa à Ucrânia despreza o direito à convivência pacífica entre nações soberanas, internacionalmente reconhecidas, a Europa e o que vai sendo designado por Ocidente alargado, têm sustentado diplomática, financeira e militarmente (com armas, e neste caso, em particular, os EUA) o lado ucraniano. 

Impõe-se, de facto, apoiar a Ucrânia (e a recente abertura de negociações de adesão à UE é também um sinal), mas esperemos que o perímetro da guerra não extravase as fronteiras deste país, nem ultrapasse o limiar do armamento convencional (conforme a repetida ameaça, denotando fraqueza e algum desespero, do ex-presidente russo Medvedev). 

Para lá dos valores visados – o direito à autodeterminação e à integridade territorial da Ucrânia, apoiados pelo Ocidente –, a questão ucraniana remete para a geopolítica europeia e mundial, como profusamente tem sido referido. Não obstante argumente com a proteção das minorias russófilas na Ucrânia, com a brutalidade e intensidade desta guerra o autocrático Putin exala o quanto o fere o encolhimento do perímetro imperial e da projeção internacional russa, após 1991. 

Em Gaza, um outro conflito muito violento, e assimétrico, invade o quotidiano dos noticiários televisivos. Depois de violentamente atacado por terroristas do Hamas em 7 de outubro passado, Israel passou à “contraofensiva”, com o propalado propósito de destruição do mesmo Hamas. Independentemente de alguma inexatidão no número de mortos contabilizados pelo lado palestiniano, afigura-se claro que o grau da punição israelita sobre as errantes populações de Gaza é tormentoso: muitos milhares de mortos civis (muitas mulheres e crianças), falta de água, sede, fome e falta de abrigo são a marca quotidiana para muitos milhares de pessoas. À Europa e aos Estados Unidos em particular – o principal aliado israelita, fulcral no apoio em armamento – cumpre pressionar Israel para uma saída negociada deste conflito (a pressão interna de muitos manifestantes israelitas não tem chegado), atento o facto de o fim supremo declarado pelo chefe do governo de Israel (Netanyahu) parecer, ademais, inatingível. Um porta-voz do das Forças Armadas de Israel (IDF) expressou isso mesmo recentemente, quando lembrou que o Hamas está transformado numa ideia entre os palestinianos. E as ideias tidas por perniciosas, mais do que combaterem-se com armas, combatem-se com ideias melhores, com a difusão de perspetivas de um mundo melhor entre os aprisionados pelo desespero. O ódio e a desconfiança entre israelitas e palestinianos está agora aumentado, mas não se vê como alcançar uma difícil paz futura sem a criação de um estado palestiniano vizinho de Israel. 

Para lá dos mais fervorosos apoiantes da Rússia (China, Irão, Coreia do Norte, designadamente), em boa parte do mundo, e particularmente no designado Sul Global, a aparente dualidade Ocidental na defesa da liberdade e dos direitos humanos (enfatizados na Ucrânia e negligenciados ou menosprezados em Gaza) debilita a legitimidade da causa ucraniana. O Ocidente precisa de ancorar solidamente a superioridade dos seus valores e ideias.

Amadeu J. C. Sousa

Amadeu J. C. Sousa

28 junho 2024