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Crise de Fé ou de Linguagem?

Segundo as sondagens, em Portugal mais de 80% confessam-se ainda católicos. Se somarmos 2% evangélicos, que são cristãos, temos ainda 82% que se declaram fiéis ao Cristianismo. Não podemos lamentar-nos, se bem que haja muitos daqueles que “se conhecem, mas não se cumprimentam…”, e outros que se professam agnósticos por causa de ideologia por conveniência, e para não ferir susceptibilidades, como os indiferentes apateístas, ou mesmo políticos de esquerda.

De facto, existe um Cristianismo anémico, por vezes asséptico, que se reflecte no parco desenvolvimento demográfico, na falta de candidatos nos Seminários católicos, pouca prática religiosa, e se exprime num certo daltonismo político, diferente no norte, em contraste com o sul, numa crise social e económica, a qual atinge a todos e nos coloca ao nível dos mais pobres europeus… Que a crise do nosso tempo seja uma crise religiosa, é sem dúvida um lugar comum, mas isto deve-se a diversos fatores que nos devem preocupar.

A resposta não pode ser assistir resignados a um facto, mas diagnosticar as causas e avaliar as consequências num País de tradição cristã e mariana muito forte. Como e em que medida se reconhece e se toma consciência? Por um regresso ao integrismo tridentino, fundamentalismo, ou a um tecnicismo atual? Ou a uma reconversão da Igreja na sua linguagem teológica, pastoral, ou na formação dos seus agentes, com educação “psico-afetiva sexual” deficiente?

É esta a grande questão, especialmente em autores franceses e alemães, analisando este fenómeno, sem esquecer as preocupações pastorais e sinodais do Papa Francisco, na linha do concílio Vaticano II, abrindo-se ao mundo numa sociedade cada vez mais secularizada e empobrecida, embora rica de fachada.

No congresso internacional sobre a problemática dos Seminários católicos foram refletidas muitas coordenadas para a Igreja e formação nas suas escolas privilegiadas.Trata-se hoje não apenas de uma crise de fé, mas também de uma crise social, familiar e espiritual que atingiu vários setores e vetores, que nos ajudam a compreender o fundo do problema, que não diz respeito apenas aos agentes, mas também ao contexto sócio-político, económico e imoral em que se vive. Não podemos mascarar a evidência, nem desmascarar ou eclipsar as ideias, caindo numa dialética de boas intenções e propósitos, que não desvalorizam as disfunções de linguagem como veículo de sensibilidades, nem a era da técnica e do digital em que estamos naufragados. Há todo um mundo que nos ultrapassa numa sociedade com visões plurais, cujas consequências sentimos, nem sempre avaliamos e, muito teóricos, iludimos os problemas. Somos assim levados, por vezes, a desvalorizar e criticar o passado, esquecer a memória, a psicologia humana, e não ponderar que uma revolução técnica e digital criou uma transformação na nossa sensibilidade, vivendo neste mundo sem mudar de mundo. Atentos às influências externas e da cultura vigente, a fé não pode ser apenas objeto ou sujeito de uns tantos privilegiados, de usuários do religioso, ou de iluminados, que se divertem com o escatológico, alheios ao mundo circundante, levando a consequências. Mesmo assim, a fé sofre uma dupla erosão: a erosão da linguagem da fé e a erosão da fé como linguagem. Com efeito, o cristianismo proclamou sempre que o seu Deus é um Deus que fala, e tudo acontece: “no começo era o Verbo”( Jo 1). Mas nem sempre soube tirar as consequências. A linguagem – a Palavra – não foi senão uma ferramenta (outil), em lugar de ser um instrumento de transformação, transfiguração e metamorfose... 

O conhecimento de Deus e o conhecimento de si são coisas diferentes. Por isso Pascal escreveu: “Tu não me procurarias, se Tu não me tivesses já encontrado”. A fé não é um dogma. O dogma, que tem a pretensão de dizer a revelação, pode também servir de cenário, em lugar de se apagar diante dele. Quando um símbolo já não é senão um símbolo e que a fé não é senão simbólica, torna-se uma técnica como o zen ou yoga para muitos ocidentais. A fé não é mais uma técnica, que se confunde com uma linguagem entre outras.Existe pois uma combinação entre as duas: o natural e o sobrenatural mais que o convencional.Toda a crise espiritual é uma crise de linguagem e de mundividência. Do romance à linguística, da pintura à televisão, como da teologia à imagem, há uma técnica real e virtual.

Claude Hagege escreveu: “Qualquer que seja o futuro, pode-se dizer que o nosso século é verdadeiramente o tempo da linguagem, como foi das descobertas sobre o cosmos, os robôs, o átomo, ou da genética”. O real, expresso também no símbolo, já não é o perceber-se como uma figuração do ideal e analógico: é uma transfiguração, que passa pelo digital, pela luz e pelas sensações (sentir) pessoais. O problema não consiste em dizer a vontade de Deus até em a fazer, mas de a mandar fazer, exprimi-la, ou vivê-la corretamente, sem esquecer os novos destinatários a quem se dirige nos parâmetros de uma nova sensibilidade, que molda um pensamento e reflexão.

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Rosas de Assis

28 junho 2024