Os programas emitidos durante a semana pela SIC e pela TVI ao fim da manhã e ao princípio da tarde são uma inaudita homenagem ao Correio da Manhã. Os abundantes crimes que o jornal noticia diariamente encontram um surpreendente eco nos dois canais, com algum eventual acréscimo de pormenores e minuciosa dissecação pelos exegetas dos dois canais.
As emissões criminais – e não deixa de ser irónico que uma parte dos crimes seja tratada num programa cujo nome é “Casa Feliz” – fazem lembrar uma velha história contada pelo jornalista Edwin Diamond e recordada por John Langer em Tabloid television (Routledge, 1998), um estudo sobre a televisão sensacionalista. Um veterano do jornalismo televisivo propõe-se explicar a um repórter novato a mecânica das notícias televisivas, contando-lhe o seguinte: certa noite, os directores executivos de um canal televisivo nova-iorquino estavam a observar simultaneamente diversos noticiários.
Todos os ecrãs exibiam um incêndio num orfanato católico em Staten Island. Perante o que estava a ver, um dos directores lamentava que o canal concorrente tivesse melhor cobertura de imagens. “As chamas deles são bastante mais altas do que as nossas”, disse ele. Mas outro replicou: “Sim, mas o choro da nossa freira é mais possante do que o das dos outros canais”.
Quem atentar nos programas dos dois canais generalistas portugueses poderá facilmente imaginar diálogos do mesmo género entre as chefias. “Eles têm em estúdio um homem que atravessou chamas de 15 metros”, irrita-se um director, sem que o outro tenha qualquer pranto, vigoroso ou débil, para contrapor. Noutra ocasião, dirá um: “A vítima deles exibiu as marcas da agressão e a nossa não mostrou nada” e o outro retorquirá: “Sim, mas nós apresentamos declarações exclusivas da mãe da vítima”. No dia seguinte, um, mais crítico, constatará: “Esta violação já tinha sido ontem notícia na concorrência”. E o mais complacente responderá: “Mas nós, a seguir, temos uma entrevista com o violador”.
A concorrência é forte. As desgraças têm de siderar.
Mesmo quem apenas leia os rodapés pode ficar com vontade de nunca sair de casa. “Entrevista a mulher agredida por homem que tentou ajudar”. “Mulher morre no regresso do trabalho”. “Ama suspeita de maltratar bebé de 15 meses”. “Condenado por violar jovem de 15 anos, em entrevista exclusiva”. “Dispara contra a filha e deixa-a tetraplégica”. “Mulher apanhada em ajuste de contas”. “Treinador de futebol filmava crianças em momentos íntimos nos balneários”. “Agredido com golpes de faca durante festas populares”. “Sequestra homem durante 37 horas”. “Homicida sem-abrigo apanhado a comprar ouro”. “Mulher tenta matar o companheiro com faca de cozinha”. “Menina abusada pelo padrasto com consentimento da mãe”. “Homem obriga companheira a sexo”. Nos primeiros dias da semana, estes foram, ipsis verbis, alguns, apenas alguns, dos crimes com que a SIC e a TVI trataram de acirrar todos os géneros de voyeuristas.
Como há ecrãs em todo o lado, é uma façanha não ficar aterrorizado com o que é exibido pela SIC e pela TVI nos momentos em que os dois canais se tornam epígonos das secções de crimes do Correio da Manhã, cujos recortes, exibidos sem vergonha, são a principal fonte informativa. É uma façanha não ficar aterrorizado se, evidentemente, não se der o caso de se ser um desses mirones do mórbido que as televisões pretendem atrair e multiplicar.
Quando se debruçam sobre os crimes, os canais não deixam de exibir aspectos anedóticos, como quando, no dia em que Portugal se estreou a jogar no Campeonato Europeu de Futebol, se falava de “famílias aos tiros” tendo como cenário um conjunto de adeptos com bonés, camisolas, cachecóis e bandeiras portuguesas. Assaz bizarro é o encontro de rodapés que, na TVI, conjuga um crime com o “prémio do dia”. À esquerda: “Juízes libertam jovem suspeito de matar empresário e deixam crime sem culpados”. À direita: 2.500 euros “[em cartão]”.
Em Tabloid television, John Langer enuncia um conjunto de características do sensacionalismo televisivo. As notícias televisivas, constata, são, principalmente, um produto mercantil gerido pelos responsáveis pelo marketing que, na competição pelas audiências, desdenham “as responsabilidades jornalísticas e a integridade”. Além disso, “no negócio do entretimento, as notícias televisivas, como qualquer outro produto da televisão, tratam de fazer aumentar a audiência por razões comerciais, não jornalísticas”. John Langer considera também que “as notícias televisivas recusam os valores do jornalismo profissional para se poderem apresentar como um espectáculo gratuito”, traficando “com trivialidades e assuntos de sentimentalismo suspeito”.
Como sustentam vários autores citados, o bom jornalismo – e a boa informação televisiva – é essencial ao bom funcionamento da democracia. Os cidadãos têm de estar bem informados para poderem tomar decisões razoáveis.
Walter Lippman, assinala o autor de Tabloid television, critica o facto de às pessoas “a quem se negou um acesso fiável aos factos” se oferecer “a incompetência e a desorientação, a corrupção e a deslealdade, o pânico e o desastre definitivo”.
A dose diária de crimes ministrada pela SIC e pela TVI nos períodos em que emulam o Correio da Manhã e a CMTV é superior à que alguém consegue digerir sem ser intoxicado pelo medo e pela desconfiança geral. Contra o oportunismo cínico televisivo, impõe-se mudar de canal.