twitter

“BURRICADAS” NA APÚLIA DE OUTROS TEMPOS

No exato dia em que entra o Verão, pareceu-me adequado escrever sobre um tema e um local que evocassem as férias que aí estão à porta e a abertura ao lazer a que o tempo estival convida de uma forma mais intensa.

Por isso, nada melhor do que falar da Apúlia doutros tempos e das “burricadas” com que então ali se compraziam as famílias que, a partir de meados do século XIX, começaram a demandar essa tão castiça e iodada praia, terra de pescadores e sargaceiros e de agricultores que, no exercício dessas actividades primárias, tinham o seu ganha-pão.

O assunto em apreço veio à minha mente quando, no passado sábado, em visita a umas tias maternas da minha mulher, tive o ensejo de ver fotografias antigas das nossas famílias e de recordar velhas histórias da praia onde, durante mais de 40 anos, passei férias, dividido entre a casa da minha avó paterna, Maria da Glória, e o moinho – o “Grão-de-Milho” – que o meu pai restaurou e adaptou a residência.

Recordei então as muitas estórias que essa minha avó tantas vezes me contou sobre a Apúlia dos seus tempos de menina e moça quando, com os seus pais e tios, começou a frequentar esta praia, a partir da última década de novecentos e, depois, já casada, os bons momentos que lá continuou a fruir.

Desde os banhos de mar das poucas senhoras que com ela se atreviam a tomar logo nas primeiras horas da manhã, fora dos olhares mais curiosos, em fatos que logo saídos do mar eram tapados por longos roupões trazidos por pressurosas criadas, até ao toldo comum, montado no areal, onde as várias famílias de banhistas se abrigavam e conviviam, passando pelas noites musicais e dançantes no Palacete do Conde de Vilas Boas (que mais tarde ficou conhecido pela “Casa do Cónego”) e pelas visitas protocolares de quem chegava e partia, tudo eu ouvia com ávida atenção e visível agrado.

Mas uma das actividades de lazer de que mais gostava de ouvir falar eram as “burricadas” que, afinal, constituem o assunto central deste meu escrito.

Não, o tema não tem nada a ver com a velha fábula de Esopo, de “O velho, o menino e o burro”, nem tampouco com a peculiar iconografia de “O mundo às avessas”, em que o famoso pintor e gravador francês, Jean-Baptiste Oudry, representou burros e mulas conduzindo homens carregados com albardas. Os asnos usados nas “burricadas” apulienses, em finais do séc. XIX e nas primeiras décadas do séc. XX, cumpriam a ordem hierárquica da sociedade do seu tempo, sem qualquer motivo de crítica ou de excesso.

Do que se trata, como decerto os meus estimados leitores já perceberam, é de passeios de burro pelos extensos areais a sul de Apúlia, até ao pinhal da Carrasqueira – também conhecido entre a criançada por “pinhal maluco”, por ser constituído por uma grande quantidade de pinheiros muito tortos, por força da maresia que as nortadas consigo arrastavam –, onde depois se faziam agradáveis piqueniques.

Com serviçais vestidas com lindos aventais de rendas, levando à cabeça cestas com lautos farnéis, eis que os banhistas ou “fidalgos”, como então eram apelidados pelos apulienses, se punham em marcha, com os mais pequenos alçados no lombo de cerca de uma dúzia de muares, parando de quando em vez para molhar os pés ou para descanso na fina areia das dunas. Até que, chegados aos sítios mais abrigados e frondosos do pinhal e escolhido o local do piquenique, se estendiam no chão as toalhas de linho bordadas, sobre as quais eram colocados os mais saborosos petiscos e os melhores vinhos das quintas dos caminhantes enquanto aos asnos se distribuía a merecida ração.

Saboreada a refeição, dormida a sesta, recobradas as forças, postas em dia as conversas e terminadas as brincadeiras dos petizes, eis que se empreendia a viagem de regresso, agora a um ritmo mais pausado, que as pernas já não tinham a mesma frescura da manhã…

E depois da chegada à povoação, era hora de recolha de cada família a sua casa, normalmente sem qualquer outro programa social para a noite porque amanhã era outro dia.

Outras “burricadas” houve de mais curta duração temporal, com mais reduzida participação de pessoas e de burros e com refeições mais frugais. Mas sempre pautadas pelo mesmo espírito de entretenimento, confraternização e contacto com a natureza.

Deste modo singelo, deixo aqui este testemunho que, conquanto por ouvir contar, reflecte uma vivência e um passado da nossa querida Apúlia que importa reter para memória futura.

Tanto quanto o pilado (caranguejo pequeno utilizado para adubação das terras) que deixou de existir e de ser apanhado e do areal que desapareceu na parte central da praia, deixando a descoberto os rochedos subjacentes, as “burricadas” fazem parte da história local e do seu património imaterial.

Boas férias para todos. E bons passeios.

António Brochado Pedras

António Brochado Pedras

21 junho 2024