Do que vou falar é de mais uma vítima da justiça, esta que os portugueses cada vez menos confiam. A justiça, a sua lentidão, anda na boca até dos políticos que deviam ter olhado por aquela. Mas só quando os atinge no seu âmago é que rasgam vestes de exigências, de pedidos de eficácia e celeridade. Antes nada! Exemplo recente, António Costa que foi ministro da justiça e primeiro ministro, mas só agora se incomodam! Não é ele a vítima que falarei, foi cúmplice por ação ou omissão deste estado de coisas. Chamemos então a Ana (nome ficcionado), nascida no Brasil e abusada por um padrasto atroz desde os seus 8 anos, durante cerca de 5 anos e até que se conseguiu, já em Portugal, desamarrar desta grilheta facínora. Em 2010 (fixem a data) aquele agressor foi condenado a 5 anos de prisão por abuso sexual continuado. Mas o Estado não se precaveu e deixou o algoz desta vítima fugir e, assim, ficar “impune” desde aí. Para tentar ver-se ressarcida pelos gravíssimos danos (patrimoniais e morais) a Ana teve de recorrer à Comissão de Proteção às Vítimas de Crime, que por lei está obrigada a adiantar uma compensação que proteja as vítimas; mas isso é só de letra; quando pode, todas as dificuldades são poucas ou inimagináveis para conceder aquilo que mais não é do que um paliativo às vítimas. Foram 5 anos à espera que alguém decidisse e o fizesse mal, tarde, ilegal e injustamente! Para esta comissão tudo serviu de desculpa, pasmem-se! Que os abusos mais graves foram no Brasil – diziam – como se o crime não fosse, dia após dia, mais destrutivo e o criminoso não tivesse sido condenado em Portugal por um crime continuado! Visão tão mais ligeira, como desprezível. Como se o mero ato do abuso, continuamente instalado, não fosse repulsivo. A Ana recorreu para o Tribunal, triste fado necessitar de novamente o fazer para ser um pouco menos vítima e procurar fugir desta lembrança permanente se tal fosse possível. Mas esta óbvia e alarmante desproteção, de quem deveria proteger, apenas se agravou quando este Tribunal precisou de 5 anos e meio, sem necessidade de qualquer perícia ou audiência de julgamento (era só interpretar factos documentados e decidir questões jurídicas) insensivelmente, em distinções anacrónicas de atos mais graves ou menos graves e consoante o país onde foram praticados, e invocando que não podia seguir futurologias para compensar danos previsíveis vindouros, arredando-se em considerandos contrários até à lei. Que justiça é esta que ignora o processo de um abuso continuado, gradativo e aquisitivo no dano, da sua exponenciação da violência constante, que arrepia ao dizer que em Portugal – para justificar a desproteção dada – o abuso se limitou – assim o disse – a um toque no corpo da criança, que atira às urtigas que para a vítima, para mais criança, pouco importa se o abuso é mais leve ou menos leve, sendo cada vez mais grave pela realidade antecedente, quando não percebe, ou não consegue extrair da vida tal perceção, sequer da literatura especializada sobre as consequências na estrutura pessoal da vítima para sempre perenes. Quando se aguarda que o Estado minorasse o sofrimento, aquele diz: não foste tão vítima assim em Portugal e não adivinhamos o que o abuso pode ter como consequências no porvir. Tudo sobrevalorizado quando, ademais, se esperava que o Estado, na sua vertente nobre de dar justiça em tempo razoável como se impõe constitucionalmente, o fizesse – e não fez! O Estado alheia-se das vítimas quando resolveria em meses o que prolonga de forma irrazoável. Vá lá que – alguém recentemente falou em sorte – houve juízes em recurso que reverteram tais atropelos. A vítima, várias vezes vítima fez, 11 anos depois, valer os seus direitos e vem, agora e por ser uma guerreira, pedir a condenação do Estado pela violação do direito a uma decisão em prazo razoável. E que diz o Estado? A vítima não tem razão. Cá estamos a aguardar, outra vez, por uma decisão que – como muitas outras – talvez só termine no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em que o Estado Português tem sido sucessivamente condenado. Mas como quem paga somos todos nós, a vontade de mudar as coisas é nenhuma. Horrível sina.
Vítima de justiça injusta e injusta justiça
António Lima Martins
12 junho 2024