O despacho da PGR, Lucília Gago, no processo “Influencer” que levou à demissão do então primeiro Ministro, António Costa, abriu uma polémica “contra” Lucília Gago, por esta publicitar o respetivo despacho. Vários setores políticos pretendem ouvir no Parlamento a PGR.
Esta pretensão exige uma análise correta sobre o conceito de autonomia tal como vem desenhado na Constituição.
A autonomia do MP merece uma breve análise sobre a sua evolução histórica e sobre a doutrina decorrente da legislação atual.
A função do Ministério Público (MP) tem as suas origens nos procuradores régios, como agentes dos negócios do rei, transformando-se, lentamente, numa magistratura pública. Com efeito, quando o monarca se tornou o único representante da sociedade, devendo promover a repressão das “malfeitorias”, que provocavam a desordem social, os procuradores do rei foram, gradualmente, levados a assumir, juntamente com a defesa dos interesses privados do rei, a defesa dos interesses gerais do Estado, ao que adicionavam a tarefa da cobrança das multas.
Foi com o advento da estrutura orgânica, inspirada na teoria da divisão dos poderes, que o MP passou a ser o representante do poder executivo junto do poder judicial, em estreita ligação com o primeiro, do qual dependia totalmente. E assim se manteve entre nós, inclusivamente no domínio da Constituição de 1933, cujo art. 118 – único que se lhe referia – determinava que «o Estado será representado junto dos tribunais pelo MP», sendo a sua direta submissão ao poder executivo, expressamente, prevista no art. 170 do Estatuto Judiciário que o fazia depender, em linha reta, do próprio ministro da justiça.
Diverso é, porém, o tratamento dado pela Constituição de 2 de abril de 1976 ao MP. Desde logo, porque define, ela própria, embora em termos gerais, as suas funções “como representante do Estado, titular da ação penal e defensor da legalidade democrática”, embora remeta para a ei ordinária a determinação dos interesses que lhe caibam tutelar.
Por outro lado, a despeito de conservar na esfera das suas atribuições a representação do Estado, é patente a sua autonomia, face ao poder executivo. Assim, não só passou a gozar de Estatuto próprio (art. 219, nº 3), como é quebrada a dependência que o ligava àquele poder, através do ministro da justiça. Na verdade, sendo a Procuradoria Geral da República o órgão superior do MP (art. 220), e este nomeado e exonerado pelo PR (art. 133, al. m), quebrado está aquele cordão umbilical.
Ora, importantes são, sem dúvida, as ilações a extrair da autonomia, no domínio da realização efetiva das funções que lhe competem, nomeadamente ao nível das relações do MP com a sociedade e o Estado.
Decorrência do conceito de autonomia, no plano estatutário dos seus agentes, é o de que sendo uma magistratura responsável e hierarquicamente subordinada, é-o apenas nos limites que a própria Constituição estabelece. Nesses limites avulta o que se define pela rigorosa e estrita obediência à legalidade democrática. Outros serão a objetividade e a imparcialidade e o dever de acatamento da verdade. O princípio da responsabilidade e da hierarquia e os emergentes poderes de direção e deveres de obediência, em que se desdobram, não poderão, contudo, em nenhum caso, colidir com o respeito pela liberdade e consciência jurídica do magistrado do MP. O princípio da autonomia postula a impossibilidade do magistrado poder, sob a invocação do seu dever de obediência e da sua responsabilidade ser forçado ou constrangido, por qualquer modo, designadamente através da utilização do instrumental disciplinar, a agir em desconformidade com a sua consciência ético-profissional. E não se diga que a operacionalidade do MP pode sofrer por isso, já que as hierarquias podem sempre evitar qualquer impasse utilizando os poderes de devolução, avocação ou substituição.
É dever da Procuradoria Geral da República criar todas as condições necessárias aos magistrados para que possam cumprir os seus deveres, sem receios de represálias ou desfavores, sem ambições de prémios ou louvores, que não sejam os que, no âmbito do seu Estatuto, lhe concedam pelo exercício consciente e livre, responsável e diligente, competente e empenhado das funções que exercem.
Em face do exposto, e em conclusão, dir-se-á que a PGR, se for chamada ao Parlamento, nos termos constitucionais, apenas poderá prestar informações de caráter geral, mas nunca de casos concretos.
Asim aconteceu com os procurados anteriores.