twitter

Faltará lustro cívico à democracia?

A maior consigna da democracia não se limita às escolhas dos eleitores nem ao procedimento dos eleitos.
A montante – e a jusante – destes elementos irrenunciáveis está a conduta dos cidadãos.

Não esqueçamos que a acção política emana da cidadania. 
Não espanta, por isso, que a chamada classe política reproduza as sensibilidades – e também as debilidades – da vivência cívica.

É certo que, como já avisava António Sérgio, «o país das secretarias» nem sempre está atento ao «país da realidade».
Mas convenhamos que este – o «país da realidade» – também deixa muito a desejar, também está a léguas dos preceitos mais elementares da justiça, do altruísmo e da decência.

Os regimes democráticos facilmente transitam do saudável pluralismo para fracturas insanáveis e rupturas irreconciliáveis.
Mas não é verdade que, entre os cidadãos, há cada vez mais clivagens que – não raramente – degeneram em cortes de relações, agressões e atentados sangrentos?

Muitas das guerras que gangrenam o mundo envolvem países que se reclamam democráticos.
No entanto, os crimes de ódio estão a crescer dentro das democracias. Se os povos se agridem, os cidadãos também matam.

Os políticos não são imunes a defeitos. Mas seremos nós, cidadãos, um mostruário de virtudes?
Acresce que – propendendo os eleitores a escolher quem mais se identifica com eles –, uma comunidade marcada pelo descontrolo cívico não tenderá a optar pela ponderação, pelo autodomínio e por horizontes largos.

Efectivamente, «o que mais dificulta que a boa semente democrática germine – novamente António Sérgio – é a terrível falta de autodomínio, de esforço para a objectividade e para a ordenação do espírito».
Talvez sem nos apercebermos, «expressamo-nos de maneira cálida e explosiva, com muita impetuosidade, sem querer ouvir quem nos fala e sem rebates de consciência quanto à exactidão do que afirmamos».

Grande parte da discussão política veicula um tom zangado. Mas os cidadãos exibem igualmente um ar cada vez mais encolerizado, num timbre crescentemente enfurecido.
Livrámo-nos da ditadura de um partido, mas passamos a estar sob a ameaça da «ditadura do eu», de muitos «eus», em permanente colisão. A democracia estará ameaçada pela «egocracia»?

O móbil da nossa decisão deixou de ser o que eu posso fazer pelos outros ou o que outros podem fazer por todos. O que nos determina é o que os outros têm de fazer por mim.
É por isso que os próprios militantes do partido vencedor depressa emparceiram nas filas do descontentamento. Só se pensa nas expectativas pessoais. Não se valoriza devidamente as carências inadiáveis dos mais necessitados.

Não há dúvida de que a democracia precisa de se refundar. Mas é igualmente inquestionável que a cidadania reclama uma profunda melhoria.
Só com melhor cidadania poderemos esperar uma melhor democracia.

João António Pinheiro Teixeira

João António Pinheiro Teixeira

30 abril 2024