twitter

Vox populi

 

 

 O que se ouve nos cafés, que é propaganda de boca em boca sem necessidade de tarjas ou esferográficas para convencer, é que os portugueses começam a fartar-se da democracia e perguntamo-nos: por que razão contestam, com tanta veemência, um sistema político que lhes deu a liberdade? À guisa de outras revoluções, por exemplo a francesa que tinha como ideais a igualdade, a fraternidade e a liberdade e apenas esta foi concretizada, para o povo isto é pouco, poucochinho para quem julgava que a revolução lhes daria uma sociedade idêntica ao Éden. Aqui, como em França, na Rússia, na China, uma coisa são os ideais revolucionários na sua prodigalidade de sonhos, utopias e quimeras, outra coisa distinta é a vida real de cada um nós em particular e da sociedade em geral. Cuidado porque esta sente ou sonha. Daí a desilusão porque se sonhou um melão e saiu um limão; “olhe, disse-me um velho a propósito das comemorações do dia 25 de Abril de quinta-feira passada: “o que faz cá falta é o Salazar”; acenos de cabeça da plateia que o escutava, a avalizar o desabafo do velho. Falei-lhe em liberdade e ele em tom irónico, e olhando para a plateia que ali se formara, respondeu-me: “liberdade com fome é igual a ditadura; pergunte a estes que estão aqui, o que ganharam com a liberdade. Os males de ontem são iguais aos males de hoje: sem casa para casar, sem saúde rápida para sarar, sem justiça para julgar, etc. etc. Isso já nós tínhamos na ditadura de Salazar. A liberdade, continuou, é como o arroto: alivia mas não cura”. Saí dali completamente batido pelos argumentos daquele velho que tinha vivido um terço da vida em ditadura e os restantes em democracia; e entre espirais de fumo duma boca desdentada, acrescentou: “não ganhei um cêntimo com o 25 de Abril. Sabe o que eu e muitos destes que aqui estão, ganhamos? Fomos desempregados por não sabermos essa coisa da internet ou lá como se diz. A magia do botão deu-nos cabe do tostão”. Será isto o desabafo de um homem amargurado pela idade e pelo desemprego, um caso isolado? Pelos acenos de cabeça que observei naquele café, não parece nada ser um caso ao acaso; antes a voz de muitos que olham para a democracia como uma coisa que de sonho virou pesadelo; cada vez a sentem mais longe de si, ou já não a sentem, e fica-se nas franjas de algumas melhorias sociais e pouco mais. São rebuçados. Grassa, portanto, entre a população, uma chama de descontentamento que se vai transformando em incêndio. Alguns, aproveitando-se deste descontentamento generalizado, já se arrogam salvadores e defensores dos que não têm casa para morar, nem emprego que pague as suas despesas diárias. Defendem estes princípios sem dizerem como os resolver. A democracia libertou o português da escravatura do regime que caiu em 25 de Abril? Libertou em quê, perguntam os carenciados deste país. Desde quando Vox Populi deixou de ser Vox Dei? Isto é, desde quando a voz do povo deixou de ser a voz de Deus? Se um dia aparece alguém que dê umas botas aos pés descalços, conquista a sociedade e passa a tê-la nas mãos. Cuidado!

Paulo Fafe

Paulo Fafe

29 abril 2024