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OS DIAS DE SEMANA “Corrida aos jornais”

 

 

“Oh João, estás chateado?” A pergunta surgia formulada deste modo num anúncio publicitário publicado há, fez ontem, 50 anos no Diário de Lisboa [1]. Por cima da interrogação, a fotografia, que mostrava três adultos, uma mulher e dois homens sentados num sofá a ver televisão com um ar satisfeito e uma criança infeliz sentada no chão de costas voltadas para os mais velhos, tornava a resposta óbvia, mas uma legenda corroborava-a, dando voz ao João: “Pois estou! Todos a ver um filme de beijinhos; eu que queria ver os cowboys do outro programa, tenho de ficar aqui… a olhar pró ar!”

O texto do anúncio do canto inferior direito da página 5 incluía duas perguntas sobre o que fazer para evitar o aborrecimento do João e terminava com a indicação de que a solução se encontrava na página seguinte. Não era na página seguinte, mas na página 7 que se resolvia o problema. O que havia a fazer era simples: comprar mais uma televisão, mais pequena do que a existente, suficiente para o João estar feliz no seu canto da sala.

Há 50 anos, a oferta televisiva era insignificante. Havia apenas dois canais, equivalentes à RTP1 e à RTP2, emitidos a preto e branco. Se a programação não tivesse sido alterada, por ser sábado, o 1.º Programa começava às 12h45 e terminava às 23h55, o 2.º Programa começava às 20h30 e terminava às 23h45. Dois dias depois do 25 de Abril de 1974 não era plausível que os adultos estivessem a ver “um filme de beijinhos”, mas imagens de rua com a multidão aos abraços. Mas a proposta de dois televisores podia não ser absurda. Após o jantar, os adultos poderiam acompanhar, no 1.º Programa, Se bem me lembro, a palestra de Vitorino Nemésio, enquanto o João veria, no 2.º Programa, os Garotos do 47A, ficando dispensado de ver a série no 1.º Programa, à hora do almoço.

Quem reparar no anúncio sem conhecer a realidade, poderá pensar que em 1974 estava ao alcance dos portugueses a possibilidade de comprar uma segunda televisão. Elas são hoje várias em muitas casas, mas há 50 anos uma só televisão era um luxo de que muitos não podiam usufruir. De resto, a muitas zonas do país (a várias freguesias de Braga, inclusive) a electricidade ainda não tinha sequer chegado. Estavam ainda longe os tempos dos ecrãs omnipresentes.

O 25 de Abril de 1974 e os tempos que se lhe seguiram tornaram imprescindível a intensificação da produção noticiosa. A informação, ainda assim, era menos abundante do que agora, circulava mais lentamente e coexistia com os inúmeros boatos que circulavam de boca em boca. O ávido consumidor de notícias escutava rádio e lia jornais, que tiveram várias edições diárias – havia menos estações de rádio, mas mais títulos de jornais. O Diário de Lisboa fala, dois dias depois de derrubada a ditadura, de uma “corrida aos jornais”, suscitada pelo “interesse do público pelo noticiário referente ao Movimento das Forças Armadas”. Uma fotografia de uma longa fila documenta essa “‘corrida’ aos jornais, que, na maioria, têm feito tiragens largamente superiores às normais”. “As sucessivas edições do Diário de Lisboa têm-se esgotado rapidamente, sendo os ardinas, em certas zonas da cidade, positivamente, ‘assaltados’”, contava o jornal, registando que “o mesmo se tem verificado na província, donde são constantes as chamadas dos nossos agentes solicitando grandes aumentos das remessas”.

De um dia para o outro a censura finalizava, mas foi preciso esperar mais alguns dias até que, no dia 3 de Maio, na manchete do Diário de Lisboa [2], na sequência de uma assembleia magna de jornalistas, “convocados para discutir a actual situação resultante da vitória alcançada pelo Movimento das Forças Armadas”, surgisse uma proclamação formal: “Jornalistas decidem: Não tolerar doravante qualquer censura interna nos jornais”.

Os primeiros tempos da democracia não implicaram um abrandamento da exigência em relação à qualidade da informação. As vozes críticas podiam agora ser audíveis, uma óbvia vantagem que a liberdade oferecia, uma superioridade evidente em relação ao tempo que ficava para trás.

“A Informação que a Imprensa fornece ao público – salvo as excepções pontuais que sempre existem – ora é sectária, ora é incompleta, deficiente, mal articulada. Problemas gravíssimos não têm sido expostos nem com a clareza nem com a continuidade equacionada e articulada que eram necessárias”, observou Sophia de Mello Breyner Andresen, na sua condição de representante da Opinião Pública no Conselho de Imprensa, constituído em 1975 [3]. Para a escritora, “problemas urgentes, como o problema da saúde, o problema do ambiente, os problemas do trabalho, ora são expostos de forma ocasional e fragmentária ora de forma partidária ou especulativa e raramente a Imprensa oferece aos seus leitores uma Informação onde exista uma exposição completa e equacionada dos problemas e dos factos”.

Nos dias de hoje, em que já não é por falta de ecrãs que há quem fique “chateado”, a missão do jornalismo é, no essencial, a mesma: apresentar “uma exposição completa e equacionada dos problemas e dos factos”. Como Sophia de Mello Breyner Andresen lapidarmente explicou, “a Liberdade de Informação não é só a liberdade de informar, mas é fundamentalmente a liberdade de ser informado”. Sem cidadãos esclarecidos, críticos e interventivos as democracias são débeis.

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

28 abril 2024