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Esta era a madrugada que eu esperava…

 

 

 

 


Assim principia um poema de Sophia de Mello Breyner sobre o 25 de Abril. Meio século volvido, um pouco mais de metade da população (57%) diz-se razoavelmente ou muito satisfeita com a democracia. De acordo com o estudo “Os Portugueses e o 25 de Abril” (ICS/ISCTE), ontem apresentado em Lisboa, embora se registe um aumento comparativamente a 2004 (39%) e 2014 (25%), não deixa de ser sintomático que um número significativo de cidadãos esteja descrente ou desiludido. Aliás, a preferência pela democracia parece conviver com uma certa predileção por sistemas de governo autocrático. De facto, os primeiros resultados do estudo “50 anos de democracia em Portugal” (ISCSCP) indicam que, embora a maioria considere a democracia como o regime “preferível”, 70% pondera um “governo de especialistas” e 47% apoiaria um “governo de um líder forte, que não tenha de se preocupar com eleições”.

Há já três décadas, em Il Facismo Eterno (1995) – em português “Como reconhecer o fascismo” (Relógio d’Agua, 2017) – Umberto Eco avisava que o mesmo paira à nossa volta em trajes civis e falas mansas. “O nosso dever – continuava – é desmascará-lo e apontar o dedo a cada uma das suas novas formas”. O intelectual italiano enumerou assim as catorze características do “fascismo eterno” ou Ur-Fascismo, procurando esboçar uma descrição genérica de diferentes formas históricas daquela ideologia, assim como dos movimentos de extrema-direita gravitando em seu redor.

A primeira característica prende-se com o culto da tradição, enquanto sincretismo cultural que mescla crenças e afirmações porventura contraditórias. Partindo do princípio de que todas as grandes verdades terão já sido sido reveladas, nega-se a possibilidade de avanços significativos no saber e de novas aprendizagens. Um segundo atributo tem a ver com a rejeição de qualquer modernismo, o que não é incompatível com o recurso às novas tecnologias. Trata-se sobretudo de condenar o desenvolvimento racionalista da cultura ocidental herdado do Iluminismo, enquanto modelo de “depravação”. O fascismo é, por definição, irracionalista, o que nos leva ao terceiro predicado: o culto da ação pela ação. Não importa tanto pensar, mas antes fazer. Assim sendo, a cultura e os intelectuais – aqueles que não se identificam com o regime – passam a ser suspeitos de desvirtuar valores ancestrais.

Umberto Eco considera que o “fascismo eterno” se carateriza também pela rejeição de qualquer raciocínio crítico. Estar em desacordo e expor eventuais contradições equivale a ser traidor, o que faz da polarização das opiniões uma quarta propriedade desta ideologia. Uma tal negação induz um quinto predicado: o medo da diferença, consubstanciado pela denúncia dos estrangeiros e pelo racismo. Em sexto lugar, a extrema-direita alimenta-se da insatisfação individual e social, do mal-estar latente das classes médias frustradas pela crise económica e/ou política. Nesse contexto, alimenta uma obsessão pelas teorias da conspiração, às quais procura responder com um nacionalismo exacerbado contra os inimigos do interior e do exterior (sétimo). Uma tal retórica sublinha simultaneamente as forças e as fraquezas dos rivais, rotulando-os de resistentes e decadentes (oitavo). 

No rol dos atributos definidos pelo linguista e escritor italiano, refere-se ainda que o pacifismo não se coaduna com o fascismo, instituindo-se um ambiente bélico permanente alimentado pelo investimento no poderio militar (nono). Por sua vez, o décimo atributo diz respeito a um elitismo de massas chauvinista em que os autóctones se consideram superiores aos de fora pelo simples facto de pertencerem ao coletivo nacional. Nessa perspetiva, todos são educados para serem heróis e a morrerem pelo grupo, se necessário. Se é verdade que "o herói ur-fascista está impaciente por morrer”, não o é menos que “na sua impaciência consegue com muito maior frequência fazer morrer os outros" (décimo primeiro). O fascismo carateriza-se ainda pelo "machismo" associando o desprezo pelas mulheres, a intolerância e a condenação da homossexualidade e outras práticas (décima segundo).

Os dois últimos atributos aludem ao populismo qualitativo e à “neolíngua”. Para o fascismo, a pessoa enquanto indivíduo não tem direitos, mas é o “povo” como entidade monolítica que exprime a sua vontade comum. A sua voz, da qual o líder se invoca intérprete legítimo, pode manifestar-se em talk-shows e nos comentários das redes sociais, entre muitos outros lugares, pondo em causa inclusivamente a legitimidade parlamentar. Embora o termo tenha sido cunhado por Orson Wells no romance distópico 1984 para referir-se à língua oficial do Socialismo inglês, o fascismo recorre por fim a uma “neolíngua”, promovendo um vocabulário pobre que limita o raciocínio crítico. A democracia nunca é um dado adquirido. Não é por acaso que o poema conclui desta forma: “E livre habitamos a substância do tempo”.

 


*Professor da Universidade Católica Portuguesa – Braga

Manuel Antunes da Cunha

Manuel Antunes da Cunha

20 abril 2024