Do conjunto de vasta obra de Maurice Duverger, um professor e sociólogo político francês, de meados do século XX, sobressalta um livro a que deu o título “La Democratie sans le Peuple”. Os fundamentos da sua obra alicerçam-se numa realidade que, não podendo ser comparada com a portuguesa no que toca ao tipo de regime – presidencialista francês e semipresidencialista português – merecem uma reflexão dada a conexão estabelecida no enfraquecimento da diversidade política e no esvaziamento do poder dos cidadãos. A sua teoria estabelece que um sistema eleitoral maioritário conduz inevitavelmente a um sistema bipartidário enquanto o de representação proporcional cria condições à existência de um sistema multipartidário. Apesar da sua teoria ser contraditada por muitos politólogos e podermos afirmar hoje, a esta distância, que nem sempre a bota bate com a perdigota (Escócia é um exemplo), o título da sua obra contribui para uma conclusão: as instituições podem ser cada vez mais musculadas se proporcionalmente, o povo aceitar como bom o princípio dos três C: Confiabilidade, Conforto e Credibilidade, numa espécie de ilusão sobre a institucionalização da Democracia, acreditando que, com a sua ausência ou participação, a Democracia funciona. Os seus estudos sobre os sistemas bipartidários acabaram por transformar a sua avaliação na lei de Duverger. Hoje e à distância de décadas desde que escreveu este e muitos outros livros, a reflexão que devemos fazer não é tanto sobre o sistema, mas sobre a institucionalização da Democracia que em Portugal ganhou forma em meados da década de 80, do século passado, quando a economia liberal se sobrepôs à ideologia, tornando-se o guia “supremo” da vontade comum e individual na sociedade portuguesa. Ou seja, abandonamos progressivamente o exercício da cidadania política, abandonamos a ação militante partidária, tornamo-nos assimétricos mesmo quando a lógica política exigia coerência com os pergaminhos de uma nova geração que bebia esperança e augurava melhor qualidade de vida, depois de décadas de decadência social e económica, de pobreza, de ausência de infraestruturas básicas, de um ensino plural e multifacetado, de cuidados de saúde acessível ou habitação condigna e se isto parece justificar o comportamento dos portugueses, fomos mais longe e entregamos o exercício da política aos “profissionais”, confiando na sua douta capacidade de conduzir os destinos do país, tomando como certa que, com mais ou menos desvios, tudo se desenrolaria com normalidade a partir dos ciclos eleitorais determinados. Enganamo-nos redondamente. E somos, também por isso, culpados pela decadência de um sistema multipartidário, multifacetado, com 23 partidos, mas sem eira nem beira no que à credibilidade diz respeito. O título de Duverger, apesar de escrito em 1967, é, infelizmente, atual e facilmente escrutinável pelos números da abstenção no exercício da política ativa e no cumprimento elementar de um dever constitucional como é o exercício de votar. Há uma exceção que espelha o modo de ser português: a motivação. Aconteceu nas eleições antecipadas de 2022 quando não era expectável que o governo caísse e este caiu contra a vontade de uma maioria que não queria eleições. Falta saber se o mesmo povo está motivado com uma nova queda, ou se vai virar às costas numa espécie de demanda ““laisser fair, laisser passé”. O que por ora importa saber é se estamos dispostos a participar ativamente na vida partidária ou invés de criticar de fora os desmandos de uma classe que todos os dias dá tiros no pé. A palavra de cada um e de cada uma não é apenas escrutinável a cada ciclo eleitoral; tem o poder de mudar por dentro, a capacidade de ir mais longe do que reivindicar ou aderir a causas. Com a falência orgânica dos partidos portugueses a constituir-se como um cancro interminável, alimentado artificialmente pela máquina do Estado e pelos interesses subjacentes, mantem-se intocável o direito e a capacidade de irmos mais longe do que defender direitos ou causas; temos as “armas” necessárias para acabar de vez com a institucionalização da Democracia e de uma vez por todas afirmar, na diversidade – há 23 partidos à escolha- que o caminho que queremos é outro, muito mais do que a simples anuência a homens e mulheres que se dedicam a querer representar-nos e tudo o que fazem, para gáudio de muitos (poucos) é representar-se a eles próprios e às suas agendas.