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Um Acordo de Regime

 

 

Há vinte anos, numa das decisões mais difíceis senão a mais traumática da minha profissional, fui obrigado a abandonar a profissão que tinha escolhido quando tinha 15 anos: jornalista. Fi-lo por duas razões que agora revelo sem pejo: fui vítima duplamente de uma decisão administrativa que colocou a mãe das minhas filhas a 300 quilómetros de distância a dar aulas, no mínimo por quatro anos e se tal já era dramático, de precário passei a precaríssimo. Ou seja, com três filhas de tenra idade no colo e a necessidade de manter o primado da família inviolável, coube-me a mim e não à Sandra, fazer a difícil escolha entre a profissão que sempre amei e a minha casa e tudo o que ela representa. Optei, então, pela opção óbvia e fiz tudo o que se esperava de quem assumiu ser pai três vezes. Na altura colaborava com os jornais Expresso e Jornal de Notícias e com a TSF, estes últimos a viverem agora, o drama da precaridade de um sistema democrático que os abandonou à sua sorte. Em janeiro de 2004, com uma nova direção de má memória, a rádio que me levou a trabalhar no fim da rua e me abriu às portas ao mundo, tomava a decisão histérica de transformar a minha remuneração mensal fixa numa colaboração à peça e a pedido. Percebi que não tinha outro caminho senão despedir-me da profissão e olhar para o futuro e para novas oportunidades na área na comunicação empresarial e na gestão. Assim fiz. Apesar de já ser visível, desde então, a degradação e o abandono sistemático a que foram votados os jornalistas entraram em modo de aceleração suicida, a par da mutilação das condições económicas e financeiras das empresas, tornando, estas, aliados de uma visão política que olhava para esta realidade como uma oportunidade para fortalecer a sua capacidade de influência e de fortalecer os instrumentos de sedução, ao mesmo tempo que se coartava a liberdade de expressão conquistada há quase 50 anos. Ao ouvir anteontem o Presidente da República, na entrega dos prémios Gazeta de jornalismo, pergunto-me legitimamente se a sua sensibilidade é oportuna ou oportunista? Oportuna é, já chega tarde para tanto aviso sobre a degradação de um caminho trilhado sistematicamente na base da precaridade e da rédea curta. Oportunista sem dúvida para quem conhece o perfil e o modo de pensar de quem já foi jornalista. O que fez ao longo de décadas de capacidade e influência, para impedir que se chegasse a este estado? Acordo de Regime, senhor Presidente? O que quer? Uma nacionalização dos órgãos de comunicação para uma reprivatização futura; uma injeção de capital anual, através do Orçamento de Estado, como defendo, sem contrapartidas degradantes para a Liberdade e independência dos Órgãos de Comunicação Social e suportada pelo cumprimento estrito de serviço público? Marcelo Rebelo de Sousa não dá respostas, tal como os sucessivos governos não foram capazes de o fazer em nome da alegada “independência” que todos reconhecem já não existe há muito tempo. Os condicionalismos impostos pela União Europeia ao apoio público, ao longo de décadas, só ajudaram a cavar ainda mais fundo a expressa vontade dos líderes partidários que viram reforçada a sua vontade de controlo e de influência através da precaridade das condições para se ser jornalista e para o exercício plural, diferenciado e de qualidade dos OCS confrontados com o abandono de leitores, com a ausência de uma educação para a literacia política dos cidadãos e com o incentivo disfarçado a uma leitura cor de rosa da realidade que tomou conta paulatinamente do dia-a-dia do país. Deu-se prioridade ao crime de faca e alguidar que não magoa ninguém politicamente, ao invés de fortalecer os mecanismos que impedissem a degradação do jornalismo sério e independente. Agora, que as redações perderam a sua memória, que os mais novos se digladiam, com honrosas exceções, por uma notícia sem olharem à ética ou a princípios básicos, que a promiscuidade entre jornalismo e justiça reforçam diariamente uma agenda suicida para a própria Democracia, que o exercício da profissão está a um nível tão degradante quanto pujante, surge a ideia de um acordo de Regime. Não sei, sinceramente, se a preocupação de Marcelo Rebelo de Sousa provém do coração ou da razão; sei é que o Estado que somos nós, para além do direito tem o dever de intervir e de exigir com rapidez uma solução. Se for necessário nacionalizar para depois voltar a privatizar com um caderno de encargos exigente, que assim seja. Paliativos é que não. Muito menos, palavras de conforto apropriadas para serem levadas pelo vento! 

 

 

 

 

Paulo Sousa

Paulo Sousa

7 janeiro 2024