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Aborto: vergonha do género humano (4)

Causa espanto que a Europa, com a liberalização do aborto, esteja a negar toda uma tradição legislativa e religiosa que vem desde as primeiras civilizações (Índia, China, Egipto…), e que encontra consagração na Bíblia e nos ordenamentos jurídicos da generalidade dos povos atualmente conhecidos. O 6.º artigo das Tábuas da Lei é perentório: «Não matarás», e o catecismo mais antigo que se conhece (por volta do ano 95 d.C.) não deixa margens para dúvidas nesta matéria: «Tu não matarás a criança por aborto ou depois do parto…»

Ultrapassadas as práticas homicidas de espartanos e romanos, os doutores da Igreja saíram a campo e proclamarem a inviolabilidade da vida humana desde a conceção até à morte, congregando santos como S. Cipriano de Cartago e S. Clemente de Alexandre, e historiadores como Tertuliano: «Já é humano aquele que será homem… É um homicídio antecipado impedir de nascer… Nós não queremos passar a ser assassinos de homens.» No tempo de Tertuliano, o primeiro autor a escrever obras em latim sobre a Cristandade, o paterfamilias romano tinha direito de vida e de morte sobre os filhos e as mulheres da alta aristocracia praticavam o aborto de modo recorrente e deliberado. Ora, o aborto levou Ovídio, poeta latino do séc. I d.C., a considerar: «Tal crime nunca uma mãe tigre o cometeu, no fundo da sua caverna da Arménia. Nunca uma leoa ousou fazer morrer os seus filhos em gestação.»

Caso não queiramos atribuir valor sagrado à conceção de Jesus, que prova que Deus quis ser embrião, feto, nascituro e homem, não podemos ignorar a quase unanimidade da tradição científica (antropologia, biologia, filosofia, medicina…) que defende que o desenvolvimento do ser humano corresponde a uma evolução contínua, sem interrupções, desde a conceção até muito depois do nascimento. Por isso, não é «uma trouxa informe de células», segundo a infeliz expressão da dra. Gisèle Halimi, que se pode extrair do corpo de uma mulher e lançar para o balde ginecológico. Parece impossível que uma licenciada por uma universidade francesa possa ter dito, em público, uma asneira destas!

No entanto, foram argumentos deste tipo que estiveram na base da aprovação da lei Veil (Simone Veil, ministra da Saúde sob a presidência de Giscard d’Estaing) que permitiu a liberalização da estafada «interrupção voluntária da gravidez» em 1975, pelo Parlamento francês. Outros argumentos tomados em consideração pelos legisladores dos restantes países que entretanto decidiram descriminalizar o aborto, foram a falsa perceção de que a mulher aborticida pode dispor livremente do embrião, feto ou nascituro que traz no ventre; o recurso à prática da eugenia, teoria que procura produzir uma seleção nas comunidades humanas, baseada em leis genéticas (vide o caso do nazismo sobre a pureza da raça ariana), sempre que o feto apresentasse malformações; e o medo de uma possível explosão demográfica em alguns países do continente, com os consequentes encargos para o erário público.

Quanto ao primeiro argumento, o que defende que o embrião, feto ou nascituro pertence à mulher grávida, lamento concluir que uma mentira se transformou num dogma ideológico; quanto ao segundo, o que vê na eugenia um instrumento de prevenção do nascimento de recém-nascidos com malformações, recuso-me analisá-lo pelo sofrimento que me causa, pois não posso deixar de pensar no costume horrendo que muitos povos antigos tinham de matar à nascença crianças deficientes (Esparta, tribos africanas, asiáticas, ameríndias… Afinal, onde é que está o bom selvagem de Rosseau?); mas detenho-me, um pouco, a analisar o propalado medo do excesso de população, porque tal mito deu origem ao inverno demográfico que atingiu praticamente todos os países da Europa, Portugal incluído. Mesmo assim, Portugal, num seguidismo confrangedor, liberalizou o aborto, quando já estava a recorrer a mão-de-obra estrangeira, a qual, na maior parte dos casos, é desqualificada. Contrariamente, continuamos a permitir a emigração de mão-de-obra altamente qualificada, como é o caso particular dos enfermeiros. Agora pergunto: não irá a nossa economia ressentir-se destas graves contradições? Onde está a coerência das políticas sociais? Que têm a dizer os nossos governantes sobre estas graves questões?

Quase garanto que, no futuro, muitos países terão de rever a famigerada lei do aborto, ainda que possa ser tarde demais!

Fernando Pinheiro

Fernando Pinheiro

6 janeiro 2024