Por entre a azáfama de ver pessoas em correrias, buscando compras, com sacos e mais atarefamento – qual trituradora consumista – refreio tal tendência, recorrendo à memória de infância: não havia presentes, não tínhamos o hábito de os dar nem de os receber, ficando a simples vivência de estarmos presentes uns aos outros e com isso de sermos e, sobretudo, de vivermos o Natal.
1. Efetivamente, hoje, estarmos assoberbados de coisas, começando ainda longe da data natalícia (essa de referência que é a de Jesus) a conjeturar sobre o modo de oferecer presentes, que, em muitos dos casos, se convertem em prendas, isto é, em que cada um dá (ou pretende oferecer) aos outros aquilo no qual vai preso, numa capciosa tendência de se fazer notado a quem se deseja agraciar.
Tanto quanto é percetível vemos uma tendência de coisificação dos sentimentos e da forma de os expressar. Com facilidade ouvimos as pessoas referirem: amo uma coisa (comida, roupa, objeto) e gosto de alguém (humano). Ora, a ordem de preferência deveria ser ao contrário: amo uma pessoa e gosto de uma coisa (mesmo que esta até possa ser um animal, mais ou menos de estimação). Deste modo, isso a que designamos de ‘presentes’ podem envolver algo mais do que circunstâncias, mesmo que sejam muito válidas ou avalizadas pela nossa conveniência.
2. Mais uma vez podemos escutar certos slogans que por serem tão repetidos quase conseguem tornar-se estilo de vida. Um deles foi – ‘o melhor do Natal são os presentes’! Não há maior falsidade e pior manipulação do que esta, pois, o melhor presente do Natal é Jesus, o Filho de Deus nascido em condição humana. É do seu nascimento que decorre a nossa fraternidade humana e em que todos n’Ele somos irmãos. Esse é o presente que mais adequadamente podemos tributar uns aos outros, fazendo-nos presença de companhia, de cuidado, de estima e mesmo de respeito até pelas diferenças.
3. A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) lançou uma campanha de segurança rodoviária de Natal e de Ano Novo, intitulada: "O melhor presente é estar presente". Eis uma forma concreta de cuidar e de respeitar os outros, quando circulamos nas estradas. A boa mobilidade exige atendermos aos outros, prevenindo-nos dos riscos e cuidando das dificuldades. Se isto pode e deve acontecer quando andamos nas estradas também deveria ter idêntico acolhimento noutros setores da nossa vida pessoal e social.
4. A trituradora do consumismo não olha a meios para atingir os seus fins, que, na maior parte dos casos, começa por nos ofuscar a mente, continua nas desculpas da falta de tempo e acaba na insensibilização aos outros, a começar dentro da própria casa. No rescaldo dos parcos dois anos de pandemia estas caraterísticas ganharam outra potencialidade e expressão: de egoísmo em fechamento fomos criando como que carapaças de indiferença, nalguns casos quase sem disso nos darmos conta. Por isso, numa espécie de compensação descontrolada acordamos, por ocasião do Natal, para ainda olharmos, nem que seja de soslaio, para os que nos são próximos, numa tentativa de deles nos aproximarmos...
5. Certas campanhas (ditas) solidárias como que cheiram a ritual com mofo: os mais desfavorecidos precisam de ajuda e suporte ao longo de todo o ano e não só nesta época. É verdade que seria grave se já não o atendêssemos por esta ocasião, mas é muito pouco que saiam do escondimento de forma tão fugaz e algo tolerada… socialmente.
6. Não haverá, na minha memória, alguém que pode precisar da minha presença neste Natal?