Ex.ma senhora Procuradora-Geral da República,
Escrevo estas breves palavras para lhe dar conta da minha inquietação e perplexidade. A prolongada insatisfação sobre o “Imposto judiciário” que pesa sobre o exercício da cidadania política ativa e a penosa jornada a que são submetidos os sujeitos políticos, tem contribuído para a degradação da perceção da qualidade da justiça e, por consequência, da Democracia.
Para uns, é, certamente, uma visão em tudo semelhante ao horror cinematográfico da impotência, perante uma crucificação pública a sangue-frio, enquanto para outros é um espetáculo que tanto serve as audiências como alimenta o populismo e a verdade alternativa aos factos sem que isso importe ao agente que viola o segredo de justiça ou o usa e o transforma em processo de comunicação. As características endógenas deste fenómeno tem tendência a espartilhar-se pelos restantes órgãos de soberania do Estado e nas suas próprias estruturas orgânicas, fundamentais ao funcionamento da Democracia. Sem elas, é difícil conceber que continuemos a viver debaixo do chapéu da lei fundamental. Ao refletir sobre a condição do meu estado de Direito de Cidadania, dou por mim a pensar se não estou a ser violado nos meus direitos fundamentais, desde logo o direito à confiança, essencial na relação dos eleitos com os eleitores, quando este é quebrado acidentalmente por via legal ou por ilegítima presunção de culpa. Acresce o meu direito a não ser influenciado na formulação à priori da presunção de culpa a que sou abusivamente induzido através da comunicação social. E por último o direito à informação clara, provada e assertiva, motivadora para a quebra do princípio da confiança política se o resultado for de forma inequívoca a condenação. É na base desta realidade e sem subterfúgios que escrevo esta missiva para que acabe com o espetáculo degradante a que tem sido sujeita a administração da justiça em Portugal. Ao contrário do que possam pensar os protagonistas do Ministério Público, as suas ações são um sinal de fraqueza e não de força; fraqueza por se servir da publicitação para constituir uma verdade processual sem substância como tem vindo a acontecer com regularidade. Nada disto tem a ver com transparência e com o trabalho fundamental e louvável que deve ser prosseguido no combate a todo o tipo de crimes. Preocupante é perceber que ao invés de considerar o princípio geral do combate à corrupção, específica os sujeitos políticos eleitos como prioridade nesse combate, conforme anúncio seu. Preocupante é perceber que, apesar das múltiplas sentenças negativas ou arquivamentos, é reforçada a informação que chega ao cidadão alimentando o estado de permanente desconfiança. Recorro à memória e esgueiro-me pelas metáforas da obra de Saramago, “Ensaio sobe a Cegueira. Pondero sobre a alienação permanente da ponderação, equilíbrio, bom senso, resguardo e defesa do primado do Estado do Direito, onde se inclui a defesa da presunção da inocência e por outro, como a sociedade instantânea em que vivemos produz uma cegueira implacável, a tal ponto que a Indiferença toma conta do mundo à sua volta e como dela parece depender para sobreviver. Assim sendo, compreende, que sem aumentar o som da minha inquietação, lhe dirija estas breves palavras para que acabe com as máscaras de esfinge implacável, com pés de barro. O exercício da cidadania política é, infelizmente, neste momento, um dos pontos fracos da nossa jovem Democracia que dispensa bem que lhe cravem de forma permanente, pregos impregnados de intolerância e rejeição. Ninguém dispensa a ação útil e essencial da procuradoria, desde que esta saiba de forma equilibrada exercer o seu poder de promover a investigação e dela retirar todas as ilações. Todos os cidadãos podem passar no crivo de uma investigação, mas as garantias de defesa dos direitos na investigação devem ser preservadas, o que, infelizmente, em muitos casos, não tem ocorrido. Nesta fase, cabe-lhe a si, tal como a todo o universo do Ministério público refletir sobre o vosso papel na defesa dos pilares da Democracia e do significado do impacto negativo que o permanente estado de desconfiança instalado na sociedade, em torno do poder político, significa, no futuro, para a própria sobrevivência do Estado de Direito.