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Os símbolos dos evangelistas

 


Na visita a simples igrejas e a catedrais, já todos nos deparámos com os símbolos dos evangelistas que marcam presença na iconografia cristã (pintura e escultura). Os mesmos aparecem nas iluminuras e desenhos com que, nos livros litúrgicos, se apresentam aqueles a quem os evangelhos são atribuídos. Na maior parte dos casos, aparece o rosto do evangelista, ladeado pelo respetivo símbolo, mas, por vezes, apenas os símbolos: Mateus - anjo/homem, Marcos - leão, Lucas - touro, João - águia1. 

A associação de Mateus ao anjo/homem prende-se com o facto de ele começar o seu evangelho com a genealogia de Jesus e assim mostrar a sua origem humana (filho de David e de Abraão), reforçada pelo seu nascimento (cf. Mt 1). 

Marcos é associado a um leão2, em representação das feras que habitam o deserto, porque começa com a pregação de João Batista, a voz que clama no deserto (cf. Mc 1, 2-25). Por um lado, aponta para a força, realeza, poder e autoridade do Filho de Deus; por outro, presta-se a uma analogia entre o rugido do leão e a pregação de João, no deserto.

Lucas aparece representado por um touro, dado que começa a sua “narração” (1, 1) com a visão de Zacarias, no Templo, em que eram oferecidos sacrifícios, de que o touro é a máxima representação. O evangelista sublinha assim a dimensão sacerdotal de Jesus. 

João aparece associado a uma águia3, em virtude do estilo elevado do seu evangelho, que fala da divindade e do mistério do Filho de Deus. Começa-o de cima para baixo (Jo 1, 14: “O Verbo fez-se carne e acampou entre nós”) e apresenta uma teologia mais profunda4. Porque voa alto e faz o seu ninho nos montes mais altos, a águia, com a profundidade do seu olhar, tem uma melhor visão das coisas. Presta-se, por isso, a representar a liberdade do Filho de Deus diante das forças deste mundo e a ser símbolo do mais teólogo dos evangelistas.

Estas representações são chamadas tetramorfo (do grego tetra, que significa “quatro” e morphê, “forma”) e encontram a sua origem em Ap 4, 6-75, que, por sua vez, se inspira na visão de Ezequiel (1, 1-28)6.

Os primeiros a fazer esta associação, ainda que com atribuições diferentes, foram Ireneu de Lyon, em meados do século II da era cristã, na sua obra Adversus Haereses, 3.11.8 (Mateus - homem, Marcos - águia, Lucas - boi e João - leão) e Agostinho de Hipona, em De consensu evangelistarum, 1.6 (Mateus - leão, Marcos - homem, Lucas - touro e João - águia). Em Jerónimo e no Pseudo-Atanásio, já encontramos a distribuição dos símbolos como são conhecidos na tradição cristã. 

Gregório Magno consagra esta atribuição, na sua Homilia sobre Ezequiel, 4, 1-2, onde também afirma: “Conta-se que o leão dorme até mesmo de olhos abertos, assim, o nosso Redentor pela sua humanidade pôde dormir na própria morte, e pela sua divindade ficou acordado permanecendo imortal. Ele também depois de sua ressurreição subindo aos céus, foi elevado às alturas como uma águia. (...) Portanto, ele é inteiramente para nós, seja nascendo como homem, seja morrendo como bezerro, seja ressuscitando como leão, seja subindo aos céus como águia”.

 À parte algum exagero ou imprecisão que, do ponto de vista exegético-teológico, se possa reconhecer a esta atribuição, não deixa de ser útil conhecê-la para que se perceba melhor os símbolos com que de diz, desde longa data, os conteúdos da nossa fé.

 

 

 

1 Esta atribuição poderá ter as suas raízes na cultura judaica, pois há um ditado do rabino Berechiah que diz: “o mais poderoso entre os pássaros é a águia, o mais poderoso entre os animais domesticados é o touro, o mais poderoso dos animais selvagens é o leão, e o mais poderoso de tudo é o homem”. Também o Midrash Shemot afirma que “o homem é exaltado entre as criaturas, a águia entre os pássaros, o touro entre os animais domesticados, o leão entre os animais selvagens”.
2 Além disso, por ser o rei dos animais, o leão presta-se a evocar o reinado de Cristo.
3 Não será por acaso que João é conhecido como a “águia de Patmos”,
4 Todos os outros evangelistas começam o seu evangelho com factos, ao passo que João começa com uma reflexão teológica sobre o Lógos (1, 1-18).
5 “Diante do trono, havia também uma espécie de mar de vidro, transparente como cristal. No meio do trono e à volta do trono, havia ainda quatro seres viventes, cobertos de olhos por diante e por detrás: o primeiro vivente era semelhante a um leão; o segundo era semelhante a um touro; o terceiro tinha uma face semelhante à de um homem e o quaro era semelhante a uma águia, em voo”.
6 Na Mesopotâmia, ao tempo do profeta Ezequiel (séc. VI a. C.), o touro representava a terra; o leão, o fogo; a águia, o céu; e o humano, a água. São as constelações dos quatro pontos cardeais do touro, do leão, do Aquário e do quarto ponto, da águia.

P. João Alberto Correia

P. João Alberto Correia

11 dezembro 2023