Pequena colectânea de fragmentos, O que vi, ouvi, aprendi... [1], do filósofo Giorgio Agamben, é um extraordinário livro crepuscular, uma generosa evocação poética de pessoas, lugares e tempos, uma memória de sabedoria ofertada.
Entre os diversos ensinamentos colhidos pelo autor, está o que lhe proporcionou o tempo presente: “Com o século XX: que lhe pertenço, sem qualquer dúvida, e o deixei no século XXI para apanhar ar. O ar, porém, era tão irrespirável que voltei para trás no mesmo momento – não de volta ao século XX, mas a um tempo dentro do tempo, que não sou capaz de situar cronologicamente, mas que é o único tempo que agora me interessa.”
Giorgio Agamben, que foi o apóstolo Filipe no filme O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, partilha com o cineasta a crítica a um mundo em que Deus não morreu, mas foi substituído pelo dinheiro.
Múltiplas são as figuras de diferentes épocas que vão surgindo ao longo do livro, associadas a alguma aprendizagem: o gnóstico Apeles, o filósofo Bento de Espinosa, a escritora Anna Maria Ortese, o poeta Konstandinos Kavafis, o abade de Fiore, a escritora Elsa Morante, o teólogo Hugo de São Vítor e o marionetista Bruno Leone, por exemplo.
Giorgio Agamben revela o que também aprendeu com os Evangelhos: “Que os homens não se devem julgar uns aos outros, mas amar-se uns aos outros, e que o julgamento é a punição em que incorrem cada vez que se afastam do amor.” Ou com a infância, o amor, a poesia e a filosofia: “O que me ensinou a filosofia? Que ser homem significa lembrar-se de quando ainda não éramos humanos, que é tarefa do homem a memória do não ainda e do não mais humano – da criança, do animal, do divino.”
Os sinos ouvidos em San Giacomo da l’Orio ou uma afirmação escutada em Roma também merecem atenção. “Em Roma ouvi alguém dizer que a terra é o inferno de um outro planeta desconhecido e a nossa vida é o castigo que os condenados de lá padecem pelos seus pecados. Mas então para quê o céu e as estrelas e o canto dos grilos? A não ser que se acredite que, para a pena ser ainda mais atroz e subtil, o inferno tenha sido posto justamente no paraíso.”
O que foi visto pelo autor pode merecer uma anotação breve, algo epifânica. “Em Grishneshwar, bem na entrada do templo, vi uma cabrita esbelta, hesitante, divina. Depois de me olhar por alguns segundos, questionadora, seguiu em frente, ligeira.” Ou uma promessa, como a que fez em Le Thor, em 1966, de fidelidade ao “céu nocturno, perfurado de incontáveis estrelas”.
Giorgio Agamben recorda os lugares em que, após um olhar, algo se tornaria significativo: em Scicli; em Ajanta, na penumbra do templo escavado na rocha; em Veneza; em Paris; nas necrópoles de Tuscia, nas igrejas escavadas nas rochas de Capadócia, em Lascaux; ou em Ginostra. Aqui, nesta povoação siciliana, um asno fez-lhe lembrar que para os antigos esse animal fazia parte dos mistérios de Vénus, “que o burro era antes de mais nada um animal ritual, asinus mysteria vehens, o asno portador de mistérios. E que, enquanto os humanos ao depararem-se com o mistério sentem-se superiores ou desmoronam-se, exaltam-se ou sentem desprezo, é da natureza animal ser portadora de mistério sem fazer alarido – genuinamente, apenas com um leve desalento.”
É a propósito da ilha de Próspero que se encontra uma observação sob o signo da qual talvez se possa colocar a compilação do que Giorgio Agamben viu, ouviu, aprendeu: “A filosofia consiste na tentativa de os poetas – tão árdua que quase ninguém consegue – fazerem coincidir a inspiração e a justiça.”
[1] Quel che ho visto, udito, appreso…, editado no ano passado pela Einaudi, foi recentemente publicado no Brasil pela Editora Âyiné, com o título Coisas que vi, ouvi, aprendi...