twitter

OS DIAS DA SEMANA Heróis do Dia de Todos os Santos

 

No Dia de Todos os Santos, talvez por acaso, o editor Manuel S. Fonseca apresentou na coluna que assina na última página do Correio da Manhã uma sugestão adequada à data: “Celebremos os verdadeiros heróis. Celebremos os voluntários dos Médicos Sem Fronteiras, os enfermeiros, os condutores de ambulâncias e de camiões, que levam água, alguma comida, medicamentos às vítimas colaterais da guerra, em Gaza. Quem põe algum pão nas bocas de fome, água nas bocas de sede merece admiração. Esses são os heróis, os que estão do lado de quem sofre, arriscando um tiro fatal, uma bomba que os faria em pedaços” [1].

Há pessoas assim – tantos heróis, tantos santos, que permanecerão anónimos – dignas de uma grata admiração. O Dia de Todos os Santos oferece uma apropriada oportunidade para, de algum modo, as evocar. Saber simplesmente que essa gente existe é uma razão adequada para impedir que se desista de ter esperança.

São, de resto, incontáveis os que no dia-a-dia, muito discretamente, com menos ou mais heroísmo, se oferecem para tornar menos penosa a vida dos seus semelhantes, para os ajudar a carregar os fardos. Não serão notícia, não receberão comendas, não darão nome a qualquer rua, não figurarão em qualquer altar, mas são um perseverante conforto para aqueles com quem se cruzam.

O filósofo André Comte-Sponville identifica nos heróis a virtude da coragem [2]. É por ela existir que, afirma, pode emergir o ímpeto de enfrentar o perigo, o sofrimento e a fadiga. A coragem é o que concorre para superar o medo, a queixa e a preguiça. A coragem não é, todavia, “apenas arriscar a vida”, constata o filósofo, chamando a atenção para a surpreendente e – tão pouco valorizada – “coragem do quotidiano”, evidenciada, por exemplo, pelas mães de família. “Mas a coragem diante do perigo é provavelmente a virtude mais universalmente admirada, a mais espectacular, a mais indiscutível quando o perigo em questão é possivelmente mortal”. Ainda assim, matiza André Comte-Sponville, “não é a mais alta virtude, nem mesmo uma ‘virtude completa’, como diria Aristóteles”.

Uma “virtude completa” é “aquela que é suficiente para garantir o valor de um acto”, esclarece o filósofo, exemplificando: “A justiça, por exemplo, é uma virtude completa: um acto justo é, necessariamente, moralmente bom”. Não é o que sempre sucede com a coragem. É que “um acto corajoso pode ser moralmente errado, até ignóbil”. Dito de outro modo: “Provavelmente é preciso muita coragem para assaltar um banco; mas isso não faz do roubo uma virtude”.

Para André Comte-Sponville, a coragem realmente apreciável é aquela que se apresenta conjugada com a generosidade. “Esta é a virtude do dom, e não conheço maior do que dar a vida, ou mesmo arriscá-la por alguém”, diz o filósofo.

Os que, no meio das guerras, colocando a vida em risco, têm a coragem e a generosidade de levar algum pão aos que têm fome, alguma água aos que têm sede, merecem todo o apreço. São os bons heróis. Acreditarão em Deus ou não, mas sobre eles, citando os versos de Maria de Lourdes Belchior, no poema “Dia de Todos os Santos”, poder-se-ia dizer que “do chão que pisavam / rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação” [3].

 


[1] “Pão na boca”. Correio da Manhã, 1 de Novembro de 2023

[2] “André Comte-Sponville: «Arnaud Beltrame est bien un héros»”

Le Monde, 26 de Março de 2018. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/03/26/andre-comte-sponville-arnaud-beltrame-ce-heros_5276519_3232.html

[3] Gramática do Mundo. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1985

 

 

 

DESTAQUE

 


Os que, no meio das guerras, colocando a vida em risco, têm a coragem e a generosidade de levar algum pão aos que têm fome, alguma água aos que têm sede, merecem todo o apreço. São os bons heróis.

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

5 novembro 2023