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Os sinos dobram por ti

Hoje, véspera do Dia de Finados, é o dia maior da saudade; e, obviamente, porque celebramos o Dia de Todos os Santos, é feriado nacional e, como tal, o momento em quem, tradicionalmente, as famílias visitam os cemitérios para homenagearem os seus mortos. 

É o dia de enfrentar a crua e dura realidade do silêncio das lajes e dos túmulos; e que o momento do memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris (lembra-te, homem, que és pó e em pó hás de tornar-te) mais não é do que o mero vislumbre perante os longes da eternidade e uma evidência de quão efémera é a nossa passagem por esta vida. 

Ora, face a esta dura verdade que implícita está nas flores oferecidas e nas lágrimas vertidas frente ao pó dos que nos antecederam e nos são queridos – avós, pais, filhos, irmãos, tios e, porque não, amigos a vizinhos – assumamos o firme propósito de fazermos de cada dia da vida que nos resta uma oração de paz e amor que nos leve a sermos mais justos, mais atentos, mais humanos, mais retos e, concludentemente, melhores pais, esposos e cidadãos empenhados na condução de um mundo mais fraterno, mais solidário e mais justo. 

Vivemos tempos paradoxais em que pouco lugar há para a solidariedade, a subsidiariedade, a defesa da dignidade das pessoas, a luta por menos desigualdades económicas e sociais; e, então, o relativismo cultural, o individualismo utilitarista, o consumismo, o hedonismo, o materialismo e o ateísmo vão-se impondo abundantemente como modelos de relacionamento humano e matrizes de vida. 

Depois, a guerra presente em tantos países não passa de um monstro que destrói as relações humanas e, consequentemente, arrasta consigo o ódio, a sede de vingança e o irracionalismo; e, como cortejo maior de iniquidades, medos, egoísmos, nepotismos, destruições, crueldades, terrorismos e desumanidades avançam o terror, o animalismo, a insanidade mental, os extremismos e a loucura que arrastam crimes horrendos: raptos, assassínios, abusos sexuais, decapitações, fuzilamentos, devastações, mutilações e mortes de milhares de adultos e de crianças indefesos, como atualmente sucede na Ucrânia e na faixa de Gaza.

Agora, facilmente vemos e constatamos que cada vez mais se afirmam as desigualdades: a fartura e a fome, a pobreza e a riqueza, o riso e o choro, a verdade e a mentira e, como consequência vamos assistindo, com generalizada indiferença e pragmatismo de políticos, governantes e gestores, a esta gritante evidência – países onde nos caixotes do lixo abunda comida e países onde se morre de fome, como sociedades onde a assistência na doença e, sobretudo na velhice e na infância, está plenamente garantida e sociedades onde se morre por falta de assistência médica e medicamentosa, de abandono e de solidão e onde as situações de sem-abrigo, por escassez de habitação, crescem exponencialmente. 

Pois bem, se hoje é o dia maior da saudade, então, que seja o momento certo de sentirmos, frente à solidão e verdade nua e crua dos túmulos, que mais tarde ou mais cedo, sempre mais cedo do que mais tarde, para aqui temos de vir fazer companhia eterna aos nossos mortos e como eles mortos seremos; e sentirmos profundamente, que pó seremos a juntar ao pó que eles já são. 

Por isso, só o pensarmos, igualmente, que os nossos filhos e netos, ao menos uma vez cada ano, aqui nos venerarão publicamente, após a nossa eterna partida, motivo é de reconciliação com as agruras e atropelos da vida; ademais, como não há verdades absolutas que, dia-a-dia, nos confortem, definem e assistem, a não ser as de que somos seres finitos e meramente passageiros neste comboio da vida, estejamos sempre prontos e capacitados de que o mais importante para quem morre é a bagagem que consigo transporta e para quem fica são as obras que ele deixa e por ele falarão para sempre. 

Assim nada mais oportuno do que, na véspera de mais um Dia de Finados, a transcrição, aqui, da bela e refulgente reflexão de Jonh Donne (poeta e orador sagrado inglês – 1571-1631 – sobre a solidariedade e amizade humanas: 

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do Continente, na parte da Terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E, por isso, não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti. 

Então, até de hoje a oito.

Dinis Salgado

Dinis Salgado

1 novembro 2023