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Brasileiro Português de Braga

Vivemos tempos conturbados. Em contexto de crise (económica, social, geopolítica, religiosa, climática), embora iniciativas solidárias prestem assistência aos mais desamparados, vai-se cavando o fosso das desigualdades e dos rancores. Agarramo-nos a leituras parcelares da história e a quinhões de territórios materiais e imaginários. Sentimentos de posse e de razão, que quase sempre acreditamos nos assistir, estorvam quaisquer diligências de diálogo verdadeiramente genuíno. Permanecemos grudados ao que julgamos ser eternamente nosso, como se não estivéssemos apenas de passagem. Ao invés do que prega o ditado popular, a culpa raramente morre solteira. É quase sempre do Outro, daquele que é diferente, que vem de um lugar distinto, seja ele geográfico ou simbólico.

Tais processos de indexação não se cingem aos conflitos armados e às tragédias humanitárias. São bem mais insidiosos. Colonizam o nosso quotidiano e desdobram suas metástases no espaço público. Tinha ainda um palmo e meio e já me interrogava por que razão se dizia que os emigrantes eram os culpados da subida do custo de vida em período estival. Não conhecia a lei da oferta e da procura, é certo, mas também não entendia como se podia responsabilizar os meus pais pela variação dos preços. Então não vínhamos de férias para a “nossa terra”? Mas seria mesmo “nossa”? Por que razão alguns nos olhavam de soslaio e outros nos qualificavam de “avecs” ou de “emigrantalhada” que “come tudo e não deixa nada”? “Não digo isso para si!”, apressavam-se a corrigir atabalhoadamente alguns.

Com o tempo, fui entendendo melhor tais mecanismos de estigmatização. Não é por acaso que a obra d’Erving Goffman faz parte da minha biblioteca de eleição. Somos sempre o Outro de alguém. Os episódios mais triviais da vida quotidiana ajudam-nos a entender isso mesmo. Os refugiados, exilados, migrantes e outras minorias – em graus diversos – são alguns desses coletivos desacreditados que sentem na pele olhares ora desconfiados, ora repreensivos. “Come a sopa, senão chamo o Cigano!”, proclamava-se antigamente para assustar as crianças. “Braga está cheia de Brasileiros! Já nem se consegue alugar casa [a preço decente]!”, ouve-se hoje por aí. Recriminam-se ainda os mais pequenos por não falar (“o nosso”) português na escola, esquecendo-nos que somos os primeiros a dizer “gourmet”, “premium”, “coffee-break”,” budget”, “feedback”, “password”, “backup”, “take-away” e por aí adiante.

Poderíamos desfiar o rol das recriminações que pululam nas redes sociais e outros espaços. “Digo isto, mas não é para si!”, remenda-se quando alguém do outro lado do Atlântico está na plateia. É inegável que muitos sabem acolher quem vem de outro lugar, quem se instala na “nossa terra”, seja por um período transitório, seja com intenções de ficar definitivamente. Mas outros persistem em apontar o dedo aos que chegam, valendo-se de qualquer episódio para justificar a sua intransigência. Enquanto continuarmos a nacionalizar a culpa, a remeter os indivíduos apenas para a sua identidade coletiva – e comportamentos verdadeiramente repreensíveis não escolhem origens – perderemos a oportunidade de nos enriquecermos na diversidade. A lei da oferta e da procura não nasceu com a imigração brasileira; a língua sempre esteve em metamorfose e a cultura (re)configura-se na convivência com outras formas de ser e estar. O encontro com Outro é sempre uma oportunidade… 

Todos somos emigrantes, como lembra o poeta brasileiro Alberto da Cunha Melo: “Com seus pássaros / ou a lembrança de seus pássaros, / com seus filhos / ou a lembrança de seus filhos, / com seu povo / ou a lembrança de seu povo, / todos emigram. // De uma quadra a outra / do tempo, / de uma praia a outra / do Atlântico, / de uma serra a outra / das cordilheiras, / todos emigram. // Para o corpo de Berenice / ou o coração de Wall Street, / para o último templo / ou a primeira dose de tóxico, / para dentro de si / ou para todos, para sempre / todos emigram.” (Canto dos Emigrantes, 1979).

Manuel Antunes da Cunha

Manuel Antunes da Cunha

21 outubro 2023