Tenho a sorte de morar num lugar privilegiado, já que estou na cidade e fora dela. Neste momento em que escrevo, se olhar a janela, vejo o céu com algumas nuvens, a casa dos meus vizinhos da frente rodeada de arbustos e flores. Por trás dela, num outro plano mais afastado, tendo o céu como pano de fundo, a parte cimeira de um monstro de cimento armado que, graças ao carvalhinho novo plantado pela Câmara e que eu digo que é meu, porque está ali, mesmo à mão de semear, mo tapa quase todo, estando eu assim sentada. Vejo-o apenas como uma miragem e sorrio agradecida ao meu carvalhinho novo. Assim situada, fácil me é esquecer a cidade e o seu constante bulir, soar, formigar e, sobretudo, atordoar.
Mas se preciso dela, da cidade, tenho-a logo ali. Nuns escassos quinze minutos, menos se me der para aligeirar o passo, estou no seu coração e junto de tudo o que quero ver ou adquirir. Então, é sempre a pé que percorro a distância entre a minha casa e o centro da urbe.
Um dia, num sábado, manhã alta e solarenga de temperatura agradável convidando ao devaneio e ao alongar do passo, sou de repente desperta por um gritar desatinado de criança que pressentia já crescidinha. Olhando de redor, imediatamente descobri que o choro vinha de um carro, estacionado uns metros à frente, junto ao passeio. Um pouco alvoroçada, fui-me dirigindo para lá. O vidro de trás estava aberto e fácil me foi ver o seu interior. No banco de trás, deitado de costas e negro de tanto gritar, estava um rapazinho dos seus quatro ou cinco anos. Sentada ao volante e com a cabeça pousada nele, uma senhora, cabelos compridos um pouco em desalinho. Parecia muito jovem. Quem deu por mim foi o garoto e como eu lhe sorri, ao mesmo tempo que levei o dedo aos lábios pedindo silêncio, olhou-me curioso e parou de gritar. Foi então que a senhora levantou a cabeça, voltou-a para trás e me viu. Um pouco atabalhoadamente, pedi desculpa. Entretanto já a criança se sentava e me olhava com uns maravilhosos olhos azuis, secos, mas cheios de curiosidade. Sentindo-me incomodada com a intromissão, já depois do pedido de desculpas perguntei se ele estava doente, enfim, se tinha acontecido alguma coisa. Então a senhora, muito jovem mesmo, saiu do carro e veio até mim.
– Não aconteceu nada, acredite. Ele tem andado com umas diarreias um pouco persistentes, mas a que o médico não deu grande importância. Apenas que lhe desse muita água e nada de chocolates. Lanchei com ele nesse café aí. Viu umas bolachas de chocolate e não aceitou a minha nega. Olhe, começou a gritar de tal maneira que me senti envergonhada. Quase o arrastei para o carro e decidi deixá-lo berrar até cansar. Ainda bem que a senhora apareceu. Olhe, fê-lo calar, eu já não sabia mais o que fazer.
– Mas repare numa coisa curiosa, ele não tem uma única lágrima – acrescentei eu.
– Já estou habituada. Ele só grita, não chora. Usa comigo a mesma táctica que usa com a avó, a mãe do meu marido com quem fica às vezes, durante a semana, quando nenhum de nós o pode ir buscar ao colégio. Ela diz que o não pode ouvir gritar e, olhe, faz tudo o que ele quer.
– Quer dizer, estraga-o, não é verdade? – Dizia eu, voltada para a criança que continuava a olhar-me com curiosidade. Olha, a tua mamã é que está certa. Se o chocolate faz mal à barriguinha, não deves comer.
– A mamã é má. A vovó dá sempre – disse o miúdo com uma ênfase de pequeno ditador e de dedo no ar, apontando a mãe.
– A senhora tem aqui um grande problema – não pude deixar de acrescentar. Mas tente resolvê-lo o mais rapidamente possível, antes que seja tarde. Desculpe-me. Não queria dar conselhos, mas não podemos deixar que as crianças se transformem em déspotas. É muito mau para aqueles com quem convivem, mas é terrível para elas. Tornam-se egoístas e insuportáveis, ninguém as atura, não acha?
– Tem toda a razão. Eu e o meu marido estamos conscientes disso e ele já apelou várias vezes à compreensão da mãe, mas, até agora... – e a senhora encolheu os ombros desoladamente.
Pedi à criança um beijo e ele meteu logo a cabecinha fora do vidro para mo dar. Lindo e doce como um anjo. Agarrei-lhe a carinha e beijei-o também. A ferazinha de há pouco tinha desaparecido. Oxalá fosse para sempre...